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A redução da participação das empreiteiras brasileiras no mercado interessa a empresas estadunidenses. Assim como o fim do monopólio da Petrobras na exploração do pré-sal interessa à Exxon e a outras petroleiras

Fundamentos para os acordos

Nos EUA vigoram diversas leis que defendem interesses econômicos do país e que na prática compõem o aparato jurídico e político de suas relações internacionais. Algumas delas vigoram desde a Independência no final do século 18, como as sucessivas medidas protecionistas tarifárias e outras não-tarifárias mais recentes como a Seção 301 do Código Comercial, aprovada na década de 1970, que permite interromper qualquer importação suspeita da prática de dumping, bem como outras leis contemporâneas que interferem diretamente no funcionamento de empresas de outros países e na sua competição com as corporações estadunidenses.

Quanto à sua legislação de controle empresarial, podemos mencionar o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) – Lei de Práticas Corruptas no Exterior –, de 1977, que proíbe empresas estadunidenses de corromperem agentes públicos de outros países. A essa lei, seguiram a Money Laundering Control Act (MLCA) – Lei de Controle de Lavagem de Dinheiro –, de 1986, como parte da política de Guerra às Drogas; a revisão do FCPA em 1999 para incluir empresas estrangeiras com ações em bolsas nos Estados Unidos, o caso das três empresas brasileiras reportadas neste artigo, e finalmente o Abatement and Financial Anti-terrorism Act (Lei Antiterrorismo de Redução Financeira) como parte do Patriot Act (Lei Patriota) da Guerra ao Terror de 2001.

O governo dos EUA agiu para que medidas anticorrupção e de controle de fluxos financeiros fossem também incorporadas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) que, por sua vez, pressionaram governos de países membros e não-membros, como o Brasil, a também adotar medidas nesse sentido. No caso brasileiro essa pressão deu margem às adaptações no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção que estipulou as bases dos acordos de leniência) e a Lei 12.850/2013 (Lei de organizações criminosas que possibilitou ampliar a delação premiada de forma massiva), ambas muito utilizadas ao longo da Operação Lava Jato iniciada no ano seguinte.

A instituição que administra o FCPA é o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ na sigla em inglês) e no caso das três empresas brasileiras sua “Seção de Fraudes da Divisão Criminal” acompanhou as acusações no Tribunal Distrital Oeste de Nova York (EDNY na sigla em inglês), uma vez que, no início da Operação Lava Jato,  todas possuíam ações na bolsa dessa cidade, por sua vez regulamentadas pelo Securities and Exchange Comission (SEC) – Comissão de Títulos e Câmbio –, uma agência governamental fundada em 1934 e equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil.

Os dados apresentados neste artigo encontram-se no site do DoJ e as iniciativas das acusações nos casos da Odebrecht e Braskem partiram de solicitações dos promotores da 13ª Vara do Tribunal Federal de Curitiba e no caso da Petrobras de acionistas minoritários nos EUA (Burck, 20191). No entanto, as acusações são praticamente as mesmas, isto é, de que as empresas teriam pagado propinas a agentes públicos como diretores e funcionários da Petrobras, bem como a políticos e partidos no Brasil e, no caso da Odebrecht, esse segundo aspecto teria ocorrido no Brasil e em outros onze países da África e América Latina. A Braskem foi acusada de repassar recursos no valor de US$ 425 milhões para a Odebrecht, sua acionista majoritária, para executar os pagamentos via “Caixa 2”. Alguns deles teriam origem em subsidiárias da Braskem e Odebrecht em paraísos fiscais e intermediados por bancos locais, estadunidenses e suíços. No caso da Petrobras, a acusação sobre os supostos pagamentos seria em relação às contribuições a partidos políticos e aceitação por diretores de propinas de empreiteiras para direcionar ou aditar contratos.

Finalmente, a legislação dos Estados Unidos possui o instrumento do Plea Bargaining –Negociação de Recurso –, utilizado em qualquer tipo de ação judicial, negociado entre a defesa do acusado e a promotoria, normalmente aceito pelas cortes se não implicar ilegalidades. O Plea Bargaining permite ao acusado reconhecer sua suposta responsabilidade, mesmo que seja inocente, e negociar uma sentença que lhe seja mais favorável do que o risco de uma condenação unilateral fundamentada na acusação original2. Este mecanismo foi utilizado para as três empresas brasileiras enfrentarem as acusações apresentadas contra elas no EDNY.

Os acordos

Os acordos da Braskem e da Odebrecht são de dezembro de 2016 e foram negociados em conjunto. O da Petrobras encerrou-se em setembro de 2018 e os três implicam nos seguintes pontos principais em comum:

  • Admissão de culpa diante das acusações e da legislação dos EUA, bem como disposição de negociar os termos do Plea Bargaining com o DoJ e os promotores do EDNY.
  • Desligamento das empresas dos funcionários envolvidos nas acusações, o que na Odebrecht envolveu 51 pessoas entre diretores executivos, gerentes e assessores; nove na Braskem, sendo sete diretores executivos e dois assessores; e cinco funcionários da Petrobras, sendo quatro diretores executivos e um assessor. Alguns deles encontram-se presos no Brasil.
  • Compromisso de cooperar integralmente com os representantes da Seção de Fraudes da Divisão Criminal do DoJ com informações e documentos por até cinco anos após a homologação do Plea Bargain.
  • Compromisso de criar Programas Corporativos de Compliance3para regular as relações das empresas com agentes públicos e privados. Essas deverão apresentar relatórios periódicos para monitoramento do DoJ e dos promotores do EDNY durante três anos.
  • Pagamento de multas estipuladas e negociadas a partir de cálculos por empresa considerando fatores como a dimensão da acusação, suposto benefício resultante, número de empregados, duração do delito4, se obstruiu ou não a justiça, entre outros. O cálculo final fixou um parâmetro de valores mínimos e máximos sobre os quais se aplicou descontos de até 25% e se definiu a distribuição desses recursos entre DoJ, SEC, governo suíço e Ministério Público Federal de Curitiba.
  • O descumprimento de qualquer item dos acordos implicará a invalidação dos mesmos e a retomada dos julgamentos regulamentares.

Os valores das multas foram fixados em dólares estadunidenses, mas seus maiores quinhões couberam ao Ministério Público Federal de Curitiba, que recebeu 65,4% da Odebrecht, 70% da Braskem e 80% da Petrobras. Os procuradores tentaram transformar esses recursos em um fundo privado para atuar politicamente, mas foram impedidos até agora pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O DoJ ficou com 17,3% da Odebrecht, 15% da Braskem e 10% da Petrobras; a SEC recebeu 10% da multa aplicada à Petrobras, além de um pagamento específico da Braskem. O governo suíço recebeu 17,3% da multa da Odebrecht e 15% da Braskem. A distribuição em valores efetivos está exposta no quadro a seguir.

Valores das multas e sua distribuição por país/agência (US$)

Empresa Odebrecht Braskem Petrobras
Multa 2,600,000,000.00* 632,625,336.81 853,200.000.00
Brasil– MPFC 1,699,280,000.00 442,837,735.77 682,560,000.00
EUA – DoJ 450,360,000.00 94,893,800.52 85,320,000.00
EUA – SEC - 325,000,000.00** 85,320,000.00
Suíça 450,360,000.00 94,893,800.52 -
Total 2,600,000,000.00 1,590,250,673.62 853,200,000.00***
Total Geral 5,043,450,673.62****

Fonte: DoJ (2019).

*A multa originalmente proposta para a Odebrecht era de US$ 4,503,600,000.00, mas a empresa conseguiu reduzi-la em função do câmbio dólar-real e da taxa de juros no Brasil. Entretanto, os valores atribuídos ao DoJ e autoridades suíças foram respectivamente 10% sobre a proposta original.

** A Braskem também fez um acordo com o SEC mencionado no Plea Bargaining para restituir US$ 325 milhões devido a violações de normas acionárias.

*** A Petrobras pagou US$ 2,95 bilhões adicionais aos acionistas da Bolsa de Nova York por meio de um acordo privado.

****Além deste valor geral, houve o pagamento dos honorários dos escritórios de advocacia que defenderam as empresas, cujo valor não foi divulgado e despesas dos representantes das três empresas para participar de reuniões e audiências nos EUA, montante igualmente desconhecido.

Conclusão

O FCPA é um instrumento de política externa dos EUA que não se limita a perseguir igualdade de oportunidades na competitividade entre empresas estadunidenses e estrangeiras, mas na prática busca favorecê-las (Burck, 2019). Uma prova disso é a discussão do governo Bolsonaro com o governo dos EUA sobre relações comerciais, investimentos e infraestrutura, iniciada com a visita do presidente brasileiro aos Estados Unidos no início de 2019 e as reuniões realizadas no Brasil sobre esse assunto pelo secretário de Comércio dos EUA, Wilbur Ross, no mês de julho.

As grandes empreiteiras brasileiras vêm sendo afetadas em seu funcionamento pela Operação Lava Jato desde 2014, mas o prejuízo não se limita a elas, pois várias indústrias que prestavam serviços, particularmente à Petrobras, na construção de plataformas, navios, sondas e outros equipamentos, perderam seus contratos para empresas estrangeiras, principalmente asiáticas, mas que interessam também aos EUA.

Obviamente a redução da participação das empreiteiras brasileiras no mercado interessa a empresas estadunidenses, como Halliburton, Kellog Brown and Root, entre outras. Assim como a extinção do monopólio da Petrobras na exploração do pré-sal interessa à Exxon e outras grandes petroleiras.

A parte financeira desses três Plea Bargains, que representa mais de US$ 5 bilhões ou quase R$ 16 bilhões ao câmbio da época, fora o acordo à parte da Petrobras com os acionistas de aproximadamente R$ 11 bilhões, é um fator a mais no enfraquecimento de empresas multinacionais brasileiras, que sempre foram altamente eficientes e competitivas, independentemente de acusações que possam ser de responsabilidade de seus gestores.

A parte das multas que coube ao DoJ foi incorporada ao tesouro dos EUA, pois este departamento funciona com verbas do orçamento federal do país. No entanto, o repasse de quase US$ 3 bilhões (aproximadamente R$ 9,4 bilhões) para o Ministério Público Federal de Curitiba foi para a conta bancária desta instituição, o que ampliou indevidamente a autonomia de um setor do Poder Judiciário brasileiro, além de distorcer o sistema de “pesos e contrapesos” que deveria existir entre os três poderes da República, em que o controle sobre o Judiciário já é bastante débil. Além disso, o repasse de recursos que varia entre 65,4% (Odebrecht) e 80% (Petrobras) sugere um pagamento pelos serviços prestados desde 2015, quando acionaram a justiça estadunidense que possibilitou a realização do Plea Bargaining.

Em resumo, a abordagem jurídica, brasileira e estadunidense, que mistura a responsabilidade dos gestores das empresas com as finanças delas, é um desserviço para o desenvolvimento político e econômico de nosso país.

Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais