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E por incêndio aqui não se o pegue apenas pelo fogo devastador. Também por ele, mas por tudo: a destruição do Brasil, da nossa soberania, por terra, mar e ar

Existe um quadro de Klee intitulado Angelus Novus.
Nele está representado um anjo, que
parece estar a ponto de afastar-se de algo em
que crava o seu olhar. Seus olhos estão
arregalados, sua boca está aberta e suas asas
estão estiradas. O anjo da história tem de
parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para
o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece
diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe,
que sem cessar amontoa escombros sobre
escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem
que gostaria de demorar-se, de despertar os
mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso
sopra uma tempestade que se emaranhou em
suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais
fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o
amontoado de escombros diante dele cresce até o céu.
O que nós chamamos de progresso é essa tempestade.
(LOWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio.
Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”.
Boitempo, 2005, Tese X, p. 87).

 

O fogo é um sinal.
Não é apenas a metáfora de um país em chamas. É um país em chamas.
Capaz de transformar o dia em noite na principal metrópole do Brasil.
Partículas vindas desde a mata amazônica, a chorar sua morte impune.
Desmatadores, matadores, grileiros.
O presidente eleito abriu a cancela, deu ordem aos homens da bala, a todos os incendiários – que sigam em frente, palavra de ordem cumprida à risca, contra a mata, contra agricultores familiares, contra indígenas, contra a sobrevivência da Nação.
Um dia de fogo.
Que se transformou num grande incêndio
Aviso de incêndio, à Walter Benjamin.
São labaredas a queimar o coração de um Brasil tão rapidamente destroçado por um golpe e pela eleição de um presidente de pensamento e práticas nitidamente fascistas.
No filme Privacidade Hackeada há um momento em que se afirma que, na esteira do recente avanço conservador sobre as nações, há que primeiro efetivar a destruição, e depois, sobre as cinzas, reconstruí-las.
Que Nação vamos encontrar depois do incêndio?
E por incêndio aqui não se o pegue apenas pelo fogo devastador. Também por ele, mas por tudo: a destruição do Brasil, da nossa soberania, por terra, mar e ar.
Lá se foram a Petrobras, a Embraer, Alcântara, irão todas as estatais em tempo recorde, as riquezas marítimas, transformar a Amazônia em pasto, em deserto, e um país marcado pela ausência de direitos essenciais.
A pergunta dos dias de hoje é primeiro sobre o processo em andamento, em seu sentido estrutural, filosófico.
E aí somos empurrados para a reflexão de Walter Benjamin, a quem Leandro Konder, me parece, chamou de formulador de um marxismo da melancolia, quem sabe pela sua capacidade de aprofundar a análise dos processo, enxergar o que era o nazismo e o fascismo, antes de se matar para não morrer num campo de concentração.
Acho que todos nós, marxistas, com nossas convictas noções de progresso, subestimamos a capacidade destrutiva do capitalismo, subestimamos o alerta antigo de que a terra é finita, a morada de todos pode ser destruída.
Respondíamos sempre que o progresso, numa sociedade socialista, serviria a todos, independentemente dos estragos subsequentes, às vezes nem considerados.
E quando no decorrer da luta política sob países capitalistas alimentávamos ilusões de domesticar o monstro.
Que se afrontasse a natureza em nome da industrialização – era um preço a pagar.
Claro, o capitalismo central tenta minimizar a fúria destrutiva em seus espaços geográficos, até certo ponto, porque tudo que é sólido desmancha no ar.
Que me desculpem, mas o capitalismo é intrinsecamente destrutivo.
Leva a terra ao seu fim em ritmo cada vez mais acelerado.
Sei, os que alimentam a noção de progresso, me incluirão entre os apocalípticos.
Que seja.
Ou a humanidade encontra caminhos para a superação do capitalismo ou o fim de seu habitat será muito mais rápido do que se pensa.
E o grave é que a ascensão de uma direita nazifascista mundo afora encoraja os defensores da perspectiva destrutiva do meio ambiente, dos direitos sociais, de tudo que ficou conhecido como direitos humanos.
Bolsonaro não é um louco, como querem alguns.
Tem projeto.
E ele o executa de modo o mais veloz possível, enquanto nos distrai com fakes, mentiras, tanta coisa que consideramos absurda, e é.
Esse projeto tem pressa destrutiva.
Explorar o mais que possa os trabalhadores.
Lucrar o mais que possa, mesmo que voltando a uma espécie de acumulação primitiva, violenta, predatória.
Que me importa o futuro?
Como o anjo de Benjamin, vive de costas para o futuro.
Interessa o presente, esgotar todo o potencial que o Brasil ainda tem, não importando o que se deixe pelo caminho de lixo, de deserto inaproveitável.
O que está em andamento nesse Brasil incendiado é um neoliberalismo violento, bárbaro, mas consciente do que pretende.
E Bolsonaro não está só.
Tem apoio de nossas precárias classes dominantes, cujo sentido de Nação inexiste.
Se nós o elegemos, vamos segurá-lo – raciocinam, olhos apenas no presente, incapazes de perscrutar o futuro –, insista-se.
Difícil, mesmo que necessário, separar os defensores da civilização, do meio ambiente, dos direitos humanos, dos direitos sociais, culturais, daqueles representantes de um capitalismo menos predador.
Procura-se com lanternas de longo alcance.
Apoiam Bolsonaro em todas as suas propostas neoliberais, as mais rigorosas que sejam, e eventualmente mostram alguma cultura civilizatória, escassa que seja.
Sei, sei bem, que uma conjuntura de tal barbárie, essa vivida por nós, reclama unidade de uma frente capaz de se unir em torno de um programa democrático.
Mas, fundamental unir um bloco histórico democrático-popular capaz de perceber o quanto o projeto em andamento no Brasil tem pressa destrutiva, e está sendo bem-sucedido na tarefa.
Não dá para desconhecermos isso, o que significa unir todas as forças que pudermos contra o atual governo, sem deixar de lado a defesa da Nação, de sua soberania, de seu meio ambiente, dos direitos dos trabalhadores.
Lembro-me das posições de Harold Laski em Reflexões sobre a Revolução de Nossa Época.
Defendia, contra Churchill, que não obstante fosse absolutamente necessário unir todos contra o nazifascismo, era essencial não esquecer as profundas reivindicações dos trabalhadores.
Se os trabalhadores ingleses deixassem passar aquela oportunidade, se não assumissem suas reivindicações no calor da guerra, depois dela, terminado o calor da batalha, viria a calmaria.
Deixaram passar.
A perspectiva conservadora de Churchill venceu.
Bolsonaro venceu as eleições, não enganou ninguém.
Não é loucura, é projeto.
Disso não podemos esquecer.
Ou ele vence, e outra Nação virá – quase irreconhecível, pelos direitos subtraídos, pelos recursos entregues ao exterior, pela democracia mitigada, pelas liberdades massacradas, se não for pela supressão completa da democracia.
Há que acordar.
Não temos tempo a perder.
Unir o nosso povo para o combate.
Bolsonaro corre de um lado a outro, botando fogo no país.
E nós?
Não temos tempo a perder.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I e II ), entre outros