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Em 2020, 124 propostas estaduais foram levadas a voto, entre as quais o casamento de pessoas do mesmo sexo e gênero, o direito ao aborto, a legalização da maconha medicinal e até recreacional

A vitória de Joe Biden e Kamala Harris se confirmou no sábado, 7 de novembro, à tarde. Ao contrário do que vinham mostrando as pesquisas nas últimas semanas, a vitória Democrata foi apertada. Refletiu em grande medida a grande divisão política e econômica que caracteriza os Estados Unidos – assim como o Brasil e outros países na atualidade.

Para entender os variados recados dessa eleição será preciso boa dose de sensibilidade e uma pitada de humildade, caso o campo progressista esteja de fato empenhado em reconstruir os laços com a classe trabalhadora estadunidense e avançar na direção da justiça socioambiental e da garantia dos direitos das minorias políticas.

Interessa-nos explorar aqui uma das mensagens aparentemente contraditórias do pleito. De um lado, os mais de 70 milhões de votos conferidos a Donald Trump e a maioria dos Republicanos no Senado; de outro, a vitória de Biden/Harris, o controle dos Democratas sobre a Câmara (House of Representatives) e as medidas progressistas amplamente aprovadas nos referendos estaduais.

Para alguns, a vitória de Biden no contexto de maioria Republicana no Senado indicaria a resistência à figura de Trump, mas prevalência da agenda conservadora. Esta interpretação pode fortalecer uma agenda mais ao centro no governo Biden-Harris, como tentativa de reconquistar o apoio da classe média branca, por exemplo.

Outra interpretação dá ênfase à mobilização progressista, sobretudo em torno de bandeiras como Medicare for all, Green New Deal, Black Lives Matter (BLM), agitadas, sobretudo, por jovens, mulheres, negras e negros, latinxs, LGBTQIA+ e outras minorias políticas. Bandeiras que para esses segmentos são propriamente life matters e não apenas left issues. Enquanto uma parte desse grupo usualmente não comparece às urnas, por discordância ou desilusão com o sistema de bipartidarismo e colégio eleitoral, outra parte se engaja crescentemente contra o Grand Old Party (G.O.P) republicano e cultiva esperanças de mudança por meio do campo dos  Democratic Socialists of America.

Parte delas se expressa na composição da Câmara dos Deputados, para a qual o campo progressista reelegeu e/ou elegeu figuras emblemáticas. Fora reeleitas as quatro deputadas que formam o chamado "The Squad": Alexandria Ocasio Cortez, por Nova York; Ilhan Omar, por Minnesota; RashidaTlaib, por Michigan; e AyannaPressley, por Massachusetts. Também foram reeleitas Deb Haaland, pelo Novo México; e Sharice Davids, pelo Kansas. Dois estreantes identificados com a luta do BLM são Cori Bush, por Missouri; e Jamaal Bowman, por Nova York.

Aqui um parênteses chocante, mas não menos expressivo: para a mesma Câmara, foram eleitos Marjorie Taylor Greene, pela Georgia, e Lauren Boebert, pelo Colorado, ambos identificados com a chamada QAnon, teoria da conspiração pró-Trump que propaga a ideia de que Democratas abusadores de crianças tentam dominar as principais instituições de poder mundial.

Outra grande fonte de esperança progressista está no resultado dos referendos estaduais. Nos Estados Unidos, a iniciativa para essas consultas pode partir tanto dos governos quanto da própria sociedade civil. Em 2020, 124 propostas estaduais foram levadas a voto – 30 a menos do que em 2016. Das 124, 28 partiram de iniciativa popular – em 2016 foram 72.

Em relação aos direitos LGBTIA+, o estado de Nevada aprovou o casamento de pessoas do mesmo sexo e gênero por 61,5% dos votos. O direito ao aborto foi garantido no Colorado, onde 59% dos eleitores barraram a medida que pretendia impor restrições à interrupção da gestação após a 22a semana. Já em Louisiana a maioria do eleitorado foi contra o reconhecimento do aborto como direito.

A descriminalização e legalização das drogas também foi destaque nos referendos. Arizona e Montana legalizaram a maconha recreacional; Mississipi legalizou seu uso medicinal; e Dakota do Sul legalizou o uso medicinal e recreacional. Até então, 11 estados haviam legalizado o consumo da maconha, sendo Colorado e Washington os primeiros, em 2012. O estado de Oregon foi ainda mais longe neste pleito e aprovou a descriminalização da posse de qualquer droga, incluindo heroína, cocaína, metanfetamina, cogumelos e outras, em pequenas doses.

No que tange à memória da Guerra Civil estadunidense, houve avanços na direção do revisionismo histórico em Mississippi e em Rhode Island. O Mississipi aprovou nova bandeira sem as referências aos Confederados da Guerra Civil. Já Rhode Island, que até então se chamava State of Rhode Island and Providence Plantations aprovou por 52,8% a retirada de "Providence Plantations" do seu nome oficial, tornando-se State of Rhode Island.

Na Califórnia, onde tradicionalmente a população é consultada sobre muitas matérias, 59% dos eleitores aprovaram o direito à voto para pessoas em liberdade condicional. Também foi aprovada a instauração de um sistema estadual de proteção à privacidade digital dos cidadãos, a California Privacy Rights Act, juntamente com um órgão estadual de fiscalização da nova legislação. Ainda na Califórnia, duas outras medidas frustraram as expectativas progressistas. Por muito pouco, 51,2%, foi rejeitada a Proposta 15, que visava reverter uma legislação de 1973 que impedia o aumento de taxas sobre propriedades comerciais. A ideia era aplicar as novas receitas nas áreas de educação e serviços públicos locais. Outro resultado que frustrou a mobilização popular diz respeito à Proposta 22, aprovada por 58,2% do eleitorado e barrou avanços da regulamentação das chamadas plataformas de aplicativos. Com esta aprovação, empresas como Uber e Lyft estão desobrigadas de classificar motoristas como empregados – e, portanto, conceder-lhes os direitos de trabalhadores formais. Após um grande, caro e efetivo lobby das empresas, ficou decidido que os motoristas permanecem na condição de independent contractors.

O destaque final vai para a Flórida, que aprovou a elevação do salário mínimo para o valor de US$ 15/hora, medida aprovada por 60,8% do eleitorado. O valor atual de US$ 8,56/hora vai aumentar progressivamente até chegar aos US$ 15 até 2026. A Flórida tornou-se o primeiro estado do Sul dos Estados Unidos e o oitavo do país a aprovar os US$ 15/hora – o 1o a fazê-lo por voto popular.

Como se vê, são muitas as mensagens da eleição de 2020: contradições e decepções, mas também esperanças. Como afirmou Kamala no discurso da vitória, ela será a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidenta dos Estados Unidos, mas certamente não será a última. Sua eleição foi um marco. Acredito que daqui pra frente não há mais condições para a formação de uma chapa Democrata que não expresse a diversidade de corpos, vivências e bandeiras do campo progressista.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)