O cenário político recente foi palco de um acordo de interesse recíproco, porém desastrado, entre o Centrão e o bolsonarismo, cujos eixos centrais giravam em torno dos conceitos de blindagem e anistia. O objetivo último era claro: livrar ambos os grupos de processos judiciais e da prisão.
A blindagem, materializada na PEC nº 3/2021 aprovada a toque de caixa na Câmara dos Deputados, visava evitar punições por eventuais desvios de emendas parlamentares, que são objeto de inquérito no Supremo Tribunal Federal. Era uma manobra para criar um escudo protetor contra a responsabilização por atos praticados durante o mandato, inclusive o desvio de conduta ou até mesmo crimes cometidos pelo parlamentar.
A anistia, por sua vez, era a peça complementar, destinada a perdoar uma série de crimes graves atribuídos a Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos. Esta lista não era trivial: incluía a formação de organização criminosa armada, a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, a preparação do Golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, e a deterioração do patrimônio público tombado, além de atos de ódio, calúnia e difamação.
Contudo, o que se configurou foi um verdadeiro "acordo Tabajara", um pacto falho que foi prontamente rejeitado pela opinião pública, desfeito parcialmente pelo Senado Federal e que, em última análise, prejudicou a imagem de ambos os lados, com reflexos que devem ecoar até as eleições de 2026.
A forma apressada com que a PEC da blindagem foi aprovada na Câmara, quebrando os interstícios regimentais entre os dois turnos de votação e com a reintrodução de matéria rejeitada durante o segundo turno de votação revelou-se uma manobra desastrosa e de consequências profundas. O texto, que buscava instituir o foro privilegiado para presidentes de partido e a votação secreta em processos contra parlamentares – claramente para proteger desvios no uso de recursos públicos –, foi rapidamente compreendido pela população como um acerto de contas entre elites políticas contra o interesse nacional. A rejeição foi imediata e contundente. O Senado, sensível a esse clamor, arquivou a proposta em tempo recorde, num raro momento de freio a um projeto de claro interesse da classe política.
O episódio abalou severamente o prestígio do Centrão e feriu de morte as narrativas bolsonaristas. A incoerência tornou-se gritante: como conciliar o discurso de integridade, democracia e soberania – bandeiras tradicionais da extrema direita – com o apoio a uma medida que visa escapar da Justiça e, ao mesmo tempo, com a defesa de sanções estadunidenses ao Brasil? Esta dupla moral retirou a legitimidade que restava a esse segmento, expondo seu caráter oportunista.
O fracasso da PEC da blindagem teve um efeito colateral direto e severo sobre o outro pilar do acordo: a anistia. Ao colocarem todas as suas fichas na blindagem e sofrerem uma derrota humilhante, a extrema direita e o bolsonarismo colocaram em risco a própria ideia de um perdão amplo. A anistia, que antes parecia uma ambição possível, viu seu horizonte encolher drasticamente. Após a repercussão negativa, a possibilidade real restringe-se agora a uma discussão de contornos ainda não definidos sobre redução de pena ou revisão da dosimetria para os condenados pelo Supremo Tribunal Federal por sua participação nos ataques golpistas de 8 de janeiro.
Qualquer perspectiva de um perdão integral para os golpistas parece ter sido enterrada pelo próprio comportamento de seus representantes. Não por acaso, o presidente da Câmara, Hugo Motta, e o relator da matéria, o deputado Paulinho da Força, já vêm publicamente descartando uma anistia ampla, limitando-se a defender pautas menos ousadas, como a prisão domiciliar. O tiro, como se vê, saiu pela culatra.
Este conjunto de eventos provocou uma inflexão significativa no ambiente político nacional. O que parecia ser um cenário favorável ao Centrão e à extrema direita para as eleições de 2026, com projeções de crescimento no Legislativo, subiu no telhado. A rejeição popular ao Congresso, acirrada por esses episódios, e que atinge números recordes, segundo a mais recente pesquisa IPESPE, abriu uma janela de oportunidade não apenas para a reeleição do Presidente Lula, mas também para uma ampliação qualitativa das forças de esquerda no Parlamento. Se o clima de descontentamento e a demanda por uma renovação profunda persistirem, o peso tradicional das emendas parlamentares e a força dos recursos dos fundos eleitoral e partidário poderão ser relativizados. O eleitorado, cansado de velhas práticas, pode buscar candidatos com perfis mais alinhados com a ética e o interesse público. O que era dado como certo – um grande crescimento do Centrão e a ampliação da bancada de direita e extrema direita no Senado a partir de 2027 – tornou-se uma incógnita.
Diante deste novo panorama, resta ao governo, aos partidos progressistas e aos movimentos sociais uma estratégia clara: perseverar. É fundamental manter e aprofundar a defesa de políticas públicas efetivas em favor dos vulneráveis e da classe média, demonstrando na prática o compromisso com a maioria da população. Paralelamente, é dever cívico continuar denunciando os riscos concretos que as forças conservadoras e de extrema direita representam para o projeto nacional. Estes riscos são multifacetados e ameaçam pilares essenciais da sociedade: a democracia, a soberania nacional, os direitos humanos, o fomento à ciência, a preservação do meio ambiente e a consolidação dos direitos sociais. A exposição dessas ameaças, somada à construção de uma agenda positiva, é o caminho para consolidar a inflexão atual e afastar o país do abismo golpista.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) da Presidência da República – Conselhão e da Câmara de Reforma do Estado do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos