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Dentre as consequências de tal ato estão a frustração dos projetos de vida dessas pessoas, o inchaço dos centros urbanos e o comprometimento da soberania alimentar, hídrica e energética do país

A notícia não é propriamente nova, mas confesso que passou despercebida. Não só a mim como a muita gente. Não vi repercussão do Decreto nº 10.473, de 24 de agosto de 2020, que extinguiu o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural (instituído pelo Decreto nº 8.736 de 3 de maio de 2016) e revogou outros 304 decretos assinados pela Presidência da República entre 1956 e 2019. É fato que boa parte desses trezentos decretos já havia cumprido as funções para as quais foram editados. 

No entanto, saltam aos olhos a extinção de programas e ações como os projetos de cooperação internacional do Brasil com países da América do Sul (Venezuela, Bolívia, Uruguai, Colômbia, Equador, Suriname e Guiana); a comissão tripartite do Ministério do Trabalho voltada ao combate às discriminações de gênero e raça no emprego e nas ocupações; o Programa Cerrado Sustentável; o Programa Mais Cultura; a Operação Arco Verde, de combate ao desmatamento na Amazônia Legal; o Programa Pró-Catador, de apoio aos catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis; o Plano Nacional de enfrentamento do crack e outras drogas; o Prêmio Nacional dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – e o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural. 

A notícia da revogação do plano mexeu comigo e por isso o tom mais pessoal nesse texto, diferentemente das outras edições desta coluna. O motivo: participei ativamente da construção do plano. Coordenei sua elaboração junto ao Comitê de Juventude do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (GT de Juventude do Condraf), quando estive à frente da Assessoria de Juventude Rural do finado Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), na gestão do ministro Patrus Ananias, no segundo mandato da presidenta Dilma. 

O Decreto nº 10.473 é mais um item da lista de tantos desmontes e violências. Se não causou surpresa, aumentou os sentimentos de revolta, indignação e tristeza. 

Nosso objetivo aqui é denunciar e repercutir a extinção do Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural e reafirmar sua relevância não somente para a vida das juventudes rurais, mas para o Brasil. 

Destinado a integrar políticas públicas de várias áreas do governo e a fomentar a elaboração participativa de novas ações, esse plano conseguiu articular oito ministérios, cujas ações se distribuíram em cinco eixos temáticos: Terra e Território; Trabalho e Renda; Educação do Campo; Qualidade de Vida; e Participação, Comunicação e Democracia. Juntas visam dar conta de um rol variado de questões que influenciam nas condições de permanência das juventudes no campo: terra, crédito, assistência técnica, apoio ao beneficiamento e à comercialização; apoio à agroecologia e à economia solidária; educação contextualizada e de qualidade; produção e fruição cultural; condições de moradia, saúde, mobilidade; acesso à internet; e incentivos à participação e organização política das juventudes são algumas das temáticas trabalhadas. 

Toda a construção foi participativa e envolveu diretamente as entidades que lutam pela reforma agrária, pela agricultura familiar e pelos povos e comunidades tradicionais no Brasil: sindicalistas da Contag e Contraf-Brasil, integrantes do MST, pequenos agricultores do MPA, jovens da Pastoral da Juventude Rural, camponesas do MMC, extrativistas do CNS, atingidos por barragens do MAB, indígenas da Apib, quilombolas da Conaq e diversas entidades de atuação regional, em especial da região Nordeste.

Ainda que as reuniões, oficinas e processos de escuta da sociedade civil voltadas especificamente para o plano tenham se dado entre 2015 e abril de 2016, a existência de políticas públicas de promoção da sucessão rural era uma demanda antiga das organizações do campo, das florestas e das águas. Foi discutida nas três Conferências Nacionais de Juventude (2008, 2011 e 2015) e em dezenas de fóruns da sociedade civil nos últimos anos – para não dizer décadas. 

A demanda advém do diagnóstico de envelhecimento do espaço rural brasileiro, associado às desigualdades históricas da questão agrária, em especial do direito à terra, como mostram os dados mais recentes do último Censo Agropecuário do IBGE de 2017. Essas e outras questões dificultam e muito as condições de permanência das juventudes no campo e a falta de perspectivas alimenta o êxodo rural das juventudes. Tanto é assim que apesar da diminuição das taxas de êxodo rural nas últimas décadas, entre as juventudes elas seguem aumentando. Dentre as consequências, tem-se a frustração dos projetos de vida dessas pessoas, o inchaço dos centros urbanos e o comprometimento da soberania alimentar, hídrica e energética do país.

Isso porque a produção de alimentos saudáveis no Brasil e no mundo advém, sobretudo, de pequenos produtores, ou seja, da agricultura familiar e camponesa. Ao mesmo tempo em que cultivam alimentos, seu modo de produção contribui para a preservação das águas e da natureza. Parafraseando oximoro mobilizado por Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida em artigo de 20011 a respeito dos povos da floresta, afirmamos a importância da sucessão rural das juventudes como forma de produzir natureza, produzir biodiversidade.

Na medida em que afeta a todas e todos, a decisão entre ficar e sair não pode recair sobre as e os jovens e suas famílias individualmente. Isto é, o Estado tem um papel a cumprir. Para Vale notar que falamos de mais de 8 milhões de jovens rurais, de acordo com dados oficiais do IBGE. Esse contingente certamente se amplia enormemente se considerarmos a perspectiva na Nova Ruralidade2, que engloba também os jovens dos pequenos municípios3, cujas características são marcadamente rurais, bem como aqueles que vivem na transição permanente entre o rural e o urbano. 

As dimensões do contingente populacional em questão e os níveis de pobreza e desigualdade aos quais estão submetidos alçam a sucessão a um direito triplo: direito à cidadania, de acesso a bens e serviços públicos; direito de viver à juventude, conforme afirma o Estatuto da Juventude, de 2013; e o direito de pertencer a uma comunidade, uma cultura e a um povo. 

No artigo intitulado "A juventude rural e o futuro da agricultura familiar", publicado nesta mesma Teoria e Debate em fevereiro de 2016, discorri sobre a importância da sucessão rural pela via da continuidade. Ou seja, da importância em dar continuidade aos modos de produzir, às tradições, aos saberes etc. Ocorre, no entanto, que no processo de elaboração do plano, avançamos nossas reflexões coletivas sobre o tema com ênfase no aspecto oposto, isto é, das descontinuidades. Se é verdade que a sucessão é feita de continuidade, também é fato que ela deve abrir portas para transformações, para a superação de opressões e preconceitos e para inovações de ordens culturais, políticas, econômicas, tecnológicas. 

No caso das jovens mulheres, por exemplo, sua permanência é indissociada da luta contra o patriarcado e das desigualdades de poder no âmbito das famílias, da escola, das associações e cooperativas. Também as juventudes LGBTIA+ só podem existir com o fim das opressões, conforme afirmado na Carta da Juventude Camponesa LGBT, articulada na Oficina de Diálogo sobre o Plano em fevereiro de 20164.

Esta grande articulação e elaboração teórica e prática que culminou com o lançamento do Plano em maio de 2016 foi interrompida com o golpe. No âmbito do governo, o próprio MDA foi extinto no mesmo dia da saída da presidenta Dilma, em edição extraordinária do Diário Oficial, na tarde de 12 de maio de 2016. Entre os movimentos sociais, a avalanche de desmontes, pressões e violências acabou por desarticular boa parte das iniciativas das juventudes rurais. Quando do lançamento do plano, no ato do Plano Safra da Agricultura Familiar às vésperas da saída da Dilma, era evidente a falta de perspectivas quanto à sua efetiva implementação em um governo golpista. Ainda assim, a decisão do GT de Juventude do Condraf foi seguir com sua publicação. A decisão foi tornar o plano uma carta política das juventudes rurais brasileiras – e assim foi feito. 

De lá para cá, o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural foi transformado em Projeto de Lei, o PL 9.263/2017, de autoria dos deputados federais Patrus Ananias (MG), Nilto Tatto (SP), Valmir Assunção (BA), Marcon (RS), João Daniel (SE) e Luiz Couto (PB), todos do Partido dos Trabalhadores. Em Minas Gerais, inspirou a elaboração do Plano Estadual de Juventude e Sucessão Rural, aprovado em 2018.  

Agora mais do que nunca é hora de defender o PL 9.236/2017 que se encontra na Câmara Federal. É hora de seguir com as denúncias do conjunto de medidas e violências políticas, sociais, econômicas, culturais e físicas – por parte do governo Bolsonaro contra a população brasileira e, em especial, contra as juventudes e os povos do campo, das florestas e das águas. Em tempos de pandemia, é hora de lutar por um novo sistema agroalimentar, baseado em circuitos curtos de comercialização de alimentos saudáveis a preço justo e na valorização do trabalho e da natureza.

Não temos a esperança da implementação desta agenda e do cumprimento dos direitos por parte do atual governo, mas nos (re)unimos em torno dessas bandeiras e, juntas e juntos, nos fortalecemos para seguir na luta por um Brasil e um mundo menos desigual e mais justo. Inspirados pelo Papa Francisco, afirmamos o compromisso de Fratelli Tutti com o Cuidado da Casa Comum.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)