Colunas | Café no Congresso

Calar a boca, evitar aliado-alvo do Judiciário e da polícia, formar uma base no Congresso para blindá-lo de processo de impeachment e “passar a boiada”, tudo para voltar no pós- pandemia com a agenda de desmonte

O presidente Jair Bolsonaro, em sua obsessão pela reeleição, é capaz até de mudar de tática, porém, jamais, de projeto. Após várias derrotadas no Congresso e o acerco judicial aos seus aliados políticos, o governo tomou quatro decisões: o presidente deve falar menos; utilizar o orçamento de guerra para ganhar popularidade; cooptar o centrão para fazer parte da base aliada; e governar por medidas infralegais, especialmente em temas que não dependem do Congresso.

Quais as evidências das derrotas no Congresso? Os exemplos das medidas provisórias sobre relações de trabalho, que perderam a eficácia, e as votações do projeto de lei da ajuda emergencial de R$ 600,00 e da Proposta de Emenda à Constituição do Fundeb, que o governo teve de mudar a orientação de “contra” para “a favor” para não perder a votação são evidências mais de que suficientes.

Quanto às medidas provisórias, cujo objetivo era retirar ou reduzir direitos sindicais e trabalhistas, todas perderam a eficácia após os 120 dias de vigência, sem que o Congresso Nacional as deliberasse. Foram elas, a MPs 873/19, que pretendia eliminar o desconto em folha da mensalidade sindical; a MP 905/19, destinada a instituir o Contrato Verde e Amarelo para jovens, com redução drástica de direitos trabalhistas e previdenciários; MP 922/20, que ampliava as contratações temporárias no serviço público, sem necessidade de concurso público; e a MP 927/20, que autorizava o empregador a praticar o trabalho remoto, antecipando férias e alterando outros direitos trabalhistas durante a pandemia por meio de acordos individuais.

Registre-se, ainda, que a oposição no Senado, com destaque para a atuação do senador Paulo Paim (PT-RS) e do líder do PT, senador Rogério Carvalho (SE), barrou as duas medidas provisórias mais duras contra os trabalhadores – no caso as MPs 905 e 927 – além da retirada da MP 936, transformada na Lei nº 14.020/2020, de todas as matérias trabalhistas permanentes que não tratavam do “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda” ou que não estavam diretamente relacionadas ao combate à Covid-19 e, portanto, eram uma espécie de contrabando.

Como se deu a mudança da tática do governo? Percebendo que suas declarações polêmicas no “cercadinho”, nas redes sociais e nas manifestações de seus apoiadores prejudicavam ainda mais o seu governo – que é disfuncional e sem coordenação intra e intergovernamental – o presidente resolveu: 1) calar a boca, especialmente após a prisão de Queiroz; 2) evitar participar de eventos de seus aliados, que já estavam sendo alvo do Judiciário e da polícia; 3) formar uma base de apoio no Congresso para blindá-lo de eventual processo de impeachment; e 4) colocar em prática o conselho de seu ministro do Meio Ambiente, que consiste em aproveitar que a mídia está voltada para a cobertura da pandemia do coronavírus e “passar a boiada” na administração, editando atos que não dependem do Congresso (decretos, portarias, instruções normativas) para desregulamentar a economia e as relações de trabalho.

Quanto à formação da base de apoio, o governo optou pelo Centrão, um grupamento fisiológico e conservador, que até recentemente era hostilizado pelo próprio Bolsonaro e seus auxiliares e seguidores. O Centrão, entretanto, possuía duas alas: uma um pouco programática e outra completamente pragmática. A primeira, liderada pelo DEM, caiu fora do grupo logo que ele decidiu aceitar cargos no governo em troca de apoio parlamentar. Ficou na base do governo, apenas a ala pragmática, aquela que troca apoio por favores e benefícios, exatamente a que era mais rechaçada e agredida pelas milícias digitais bolsonaristas.

A formação da base, como já anotado, é menos para garantir apoio à agenda de reformas do governo e mais como prevenção para um eventual pedido de impeachment. É tanto que o governo adotou o conselho de seu ministro do Meio Ambiente de desregulamentar a economia e as relações de trabalho, bem como desmontar estruturais estatais, via medida infralegais, que não dependem de aprovação prévia do Congresso Nacional. Quem se der ao trabalho de analisar o Diário Oficial da União vai se impressionar com a quantidade de atos infralegais que passaram a ser publicados com a finalidade de desregulamentar, flexibilizar e eliminar direitos e garantias nas áreas do trabalho, dos direitos humanos e do meio ambiente.

Com essa mudança de tática, pelo menos momentaneamente, o governo distensionou as relações com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal, de um lado, e vem recuperando popularidade, especialmente entre os pobres, de outro, além de atender às demandas do mercado na desregulamentação de atos de hierarquia inferior à lei. A vinculação da marca governamental à ajuda emergencial de R$ 600 tem melhorado a avaliação do governo entre os mais pobres, que atribuem esse auxílio emergencial ao governo Bolsonaro, embora a proposta inicial do governo tivesse sido apenas de R$ 200 e por três meses.

Se a perda de popularidade e as derrotas governamentais eram resultado dos erros do presidente e dos acertos da oposição, o que fará a oposição de esquerda, já que o governo mudou de tática e eliminou parte desses problemas, ainda que temporariamente? É preciso urgentemente se reposicionar levando em conta essa nova realidade, na qual o governo procura evitar erros, de um lado, e assumir bandeiras históricas dos partidos progressistas, como por exemplo, um programa de renda básica, de outro.

A mudança de tática governamental, entretanto, não significa que o governo desistiu do desmonte do Estado em nível legal e constitucional. Pelo contrário. Essa mudança de tática é exatamente para evitar um processo de impeachment neste momento e ganhar musculatura para voltar com força total no pós- pandemia, com o retorno à agenda governamental de temas como a reforma administrativa, a reforma trabalhista e sindical, a capitalização da previdência, a quebra de monopólio e privatizaçãode estatais estratégicas, como Eletrobrás e Petrobras. Aliás, enquanto isso, por meio dessa tática de usar medidas infralegais, o governo vai privatizando “aos pedaços” as empresas, criando subsidiárias para burlar a Constituição. E, no pós-pandemia, adotará um discurso de necessidade urgente de equilibrar as contas públicas, de conter o desemprego e de amparar os desalentados, com a promessa de rápida retomada do crescimento.

Portanto, o pós-pandemia vai exigir respostas à crise social e a oposição precisa ter projetos capazes de convencer e mobilizar a sociedade, sob pena de Bolsonaro liderar uma agenda de reforma que combine o desmonte do Estado e alguns temas de interesse da sociedade, como a ideia da renda básica e da reforma tributária, que terão prioridade no debate, isolando a oposição nesse processo. A denúncia do caráter conservador, antinacional, antidemocrática e antissocial do governo é importante, mas não é suficiente para que a oposição de esquerda se credencie a substituí-lo; é preciso ser propositivo e apresentar solução para os problemas.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, diretor de Documentação do Diap, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGB-DF, e sócio das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas