Colunas | Opinião

Primeiro monumento de cultura negra considerado Patrimônio Histórico do Brasil está ameaçado por um edifício de cinco andares, sem qualquer licença de autoridades

Vou falar de uma casa de santo das mais respeitadas do Brasil. Como do costume centenário do candomblé: peço licença aos mais velhos para usar da palavra. Começar do começo, dizer como fui provocado agora, não obstante minha relação com o terreiro seja antiga. O terreiro da Casa Branca do Engenho Velho realizou um encontro, com a presença do grupo “Samba pra rua”, dirigido pela professora Ana Flauzina, da Universidade Federal da Bahia, dia 25 de março, domingo. Noite alegre no terreiro. De paz.

Pretendeu saudar o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, estabelecido por lei sancionada pelo presidente Lula como sendo dia 21 de março. Uma mesa discutiu racismo religioso com as notáveis presenças dos professores Samuel Vida e Hélio Santos, da promotora Lívia Vaz, dirigida pela ekede Isaura Genoveva, mestranda em Direito da Universidade Católica Católica de Salvador. Claro, tudo sob a direção e a bênção de Neusa Cruz, mãe-de-santo do terreiro, e também de Gersonice Azevedo Brandão, conhecida como ekede Sinha. Estávamos presentes, eu e Carla, minha querida companheira.

Foi nessa noite de paz, sob a bênção dos orixás, a revelação de um crime contra o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a venerável Casa Branca do Engenho Velho, de Salvador, tombada pelo Iphan, primeiro monumento de cultura negra considerado Patrimônio Histórico do Brasil: um edifício de cinco andares, sem qualquer licença de autoridades, erguido na parte de cima do terreiro, com evidentes riscos de desabar sobre a casa religiosa, destruindo o templo e matando pessoas. Utilizando-me das redes sociais, resolvi fazer a denúncia, tornando público o acinte e cobrando providências, e rapidamente o fato se espalhou como rastilho de pólvora, com a solidariedade de muita gente e repercussão midiática.

A prefeitura havia embargado a obra em setembro de 2022, sem resultado – prosseguiu impávida, a desafiar a autoridade do município. Com a denúncia, novo embargo, e a demolição do último pavimento, como se isso adiantasse. A Casa Branca, cuja luta se arrasta há mais de três anos, resolveu, corretamente, iniciar a campanha “Demolição Já”. Não há outro caminho senão o da demolição do monstrengo, erguido sem nenhum critério e cercando perigosamente uma casa religiosa de tanta tradição, a quem a Bahia e o Brasil têm obrigação de respeitar. A ninguém é dado o direito de atuar à margem da lei, ignorando as autoridades e atentando contra um patrimônio histórico, considerado o primeiro terreiro baiano de Keto.

Discutir o racismo religioso, como feito pela Casa Branca naquela noite, não é apenas um exercício intelectual. É absolutamente essencial, um gesto político necessário diante da óbvia perseguição sofrida pelas religiões de matriz africana no Brasil e na Bahia. Cobra-se da prefeitura, agora, não somente o embargo, mas a derrubada do monstrengo erguido à revelia dela própria. Deixá-lo em pé será estimular ações criminosas, ilegais, e a continuidade do ataque às casas religiosas do povo de santo. Respeito é bom e eu gosto, costuma-se dizer à vista de agressões. A Casa Branca exige respeito. É templo sagrado. A ninguém é dado o direito de profaná-lo, agredi-lo, colocá-lo em risco.

Há uma discussão sobre se a Casa Branca é o primeiro terreiro constituído no Brasil. Não creio discussão essencial. É dos mais antigos e respeitados: quanto a isso não há discussão. Renato da Silveira, com quem compartilhei prisão nos anos 1970 na Penitenciária Lemos Brito em Salvador, antropólogo, escreveu livro sobre o Candomblé da Barroquinha, local de nascimento da Casa Branca, alentada produção histórico-antropológica do assim chamado “processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto”.

Ordep Serra, outro notável antropólogo, atual presidente da Academia de Letras da Bahia, localiza as raízes místicas da Casa Branca nas antigas cidades africanas – iorubanas – de Oió e de Ketu. Oió, vetusta cidade-estado é centro do culto de Xangô, localizada na Nigéria. Ketu, do Benim, é consagrada a Oxossi, considerado o fundador da dinastia ioruba, primeiro soberano.

Os membros da Casa Branca reconhecem o peso no processo de fundação do terreiro de africanos procedentes de outros grupos étnicos, além dos oyós e do povo de Ketu, como as etnias tapá, egbá, efan e ijexá. A transferência da Barroquinha para o local onde se encontra até hoje, à avenida Vasco da Gama, conhecido à época como Roça do Engenho Velho, provável tenha ocorrido ali por meados do século 19.

Hoje, a entrada da Casa Branca é constituída por uma pequena praça, Praça de Oxum, na parte plana do terreiro. O limite da Casa Branca é demarcado por monumental grade de ferro, lavrada com motivos da mítica do candomblé, de autoria do artista plástico Bel Borba. As edificações principais ficam na parte superior do terreno: salão de festas, sacrários, cômodos de uso residencial de hierarcas, clausura, sala de refeições e cozinha ritual. Na mesma encosta, santuários e também casas onde residem membros da comunidade.

Não há acordo entre estudiosos quanto à data do nascimento do candomblé. Há apenas alguma convergência apontando o surgimento da Casa entre as últimas décadas do século 18 e os primeiros anos do século 19. Acredita-se que a implantação de maior vulto do terreiro tenha se dado em 1812, quando ocorreram condições políticas mais favoráveis à população negra, escravizada ou livre.

O leitor, a leitora, pode querer saber como acontecem os processos sucessórios na Casa. O falecimento de uma Ialorixá, mãe de santo, é seguido por um longo período de luto. A Casa passa a ser dirigida por uma iniciada mais velha. O interregno conclui-se com a designação de uma nova Ialorixá, escolhida por meio de um rito divinatório, o jogo de Ifá, mais conhecido como jogo de búzios. Ninguém se iluda: há crises sucessórias, e cisões no mundo do candomblé. Houve algumas na Casa Branca, dando origem a outros terreiros.

No Ilê Axé Iyá Nassô Oká foi iniciada Mãe Menininha, Maria Escolástica da Conceição Nazaré, fundadora do Ilê Axé Iá Omin Iamassê, famoso terreiro do Gantois, cantado em prosa e verso por tanta gente. Menininha, assim, é filha da Casa Branca. Ganhou asas e voou. Como Eugênia Ana dos Santos, nascida também no terreiro da Vasco da Gama, fundadora depois do não menos célebre Ilê Axé Opô Afonjá. Como Menininha, voou.

Não há exagero: muitos terreiros espalhados pelo Brasil procedem da Casa Branca do Engenho Velho – casas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Sergipe, de tantas outras partes do País. O poeta Francisco Alvim, com propriedade denominou-a “A mãe de todas as casas”. Se não é de todas, é de inúmeras.

E a Casa Branca tem a ver também com o samba: Tia Ciata, matricarca das escolas de samba cariocas, batizada Hilária Batista de Almeida, é filha de Oxum iniciada na Casa. Ela acompanhou o célebre Bamboxê Obitikô na ida ao Rio de Janeiro, onde ele fundou talvez o primeiro terreiro carioca da nação nagô: candomblé de João de Alabá, onde ela veio a ser Iyá Kekerê, posto de maior relevância no terreiro. A velha guarda da Mangueira rendeu homenagens ao terreiro, visitando-o.

Por ter essa larga história, a Casa Branca foi tombada pelo Iphan em maio de 1984, tombamento homologado em 27 de junho de 1986 pelo ministro da Cultura, Celso Furtado. Waldir Pires, governador da Bahia, em 1987 desapropriou o posto de gasolina em frente ao terreiro, “visando a preservação e conservação do sítio de valor histórico e etnográfico do Ilê Axé Iyá Nassô Oká – Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho -, bem como a devolução da área historicamente ocupada pelo terreiro”.

O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), do governo do Estado, demoliu o posto em 1989, e toda a área foi novamente incorporada à Casa Branca, à Praça de Oxum, cujo projeto de urbanização foi feito por Oscar Niemeyer, presente dele ao terreiro.

Agora, cercado por ameaças de variada natureza no entorno, o terreiro está pedindo ao IPAC o tombamento da Casa como patrimônio histórico do Estado da Bahia. À última ameaça, o edifício de cinco andares, cuja obra por pressão da casa religiosa, foi paralisada, e por cuja demolição o terreiro está lutando, acresçam-se dezenas de outras, de construções irregulares, asfixiando-o. Acresça-se a circunstância da existência de várias outras casas de santo no Engenho Velho de Federação, todas de muito valor histórico.

Lembrar alguns. Terreiro do Bogum, o Zoogodó Bogum Malê Rundó. Terreiro Obá do Cobre. Ilê Axé Obá Tony. Nzo Tanuri Junsara. Ilê Axé Alarabedé. Ilê Axé Oyo Bomim. Terreiro Tumbalagi Junçara. Terreiro Tumba Junssara. Ilê Axé Lajuomin. Ilê Axé Onadô ny Ossun. Nzo Onumboyá.Ilê Osumare Araka Axé Ogodo – Casa de Oxumaré. Ilê Iyá Omi Axé Yamassê – Terreiro do Gantois. Engenho Velho de Federação é um grande quilombo religioso. Não cabe aqui discutir isso, mas Salvador registra a existência inumeráveis casas religiosas do povo de santo.

Houve uma intensa mobilização em torno do edifício erguido no alto da Casa Branca, e ao menos a construção foi embargada. Resta agora a demolição, absolutamente imperiosa. Além disso, considerando ser o Engenho Velho de Federação um bairro povoado por tantos terreiros, caberia uma ação do poder público, especialmente da Prefeitura, no sentido de garantir a existência deles, seriamente ameaçada porque todos assediados, constrangidos de diversos modos.

Ninguém cerca, pressiona, acossa templos da Igreja Católica, da Igreja Presbiteriana, da Igreja Batista, da Universal do Reino de Deus. E isso deve ser louvado. E por que se faz isso com as casas religiosas do povo de santo? Nesse caso, tem razão mães e pais de santo, ao denunciar racismo religioso, atitude intolerante diante de uma religião negra, a fugir dos padrões cristãos.

Tal religião foi fundamental no processo de resistência ao modo de produção escravista, aos terrores da escravidão. Com muita capacidade política, a combinar habilidade e tenacidade, soube não se dobrar, buscar aliados no decorrer de mais de 350 anos, inclusive entre os brancos, e sobreviver. Soube, num exercício notável, no que poderíamos denominar um impressionante jogo de corpo, resistir e seguir garantindo o culto. Parte do que os historiadores baianos Eduardo Silva e João José Reis chamam de “o heroísmo prosaico de cada dia”.

Duro constatar a existência da perseguição à religião negra até os dias atuais, a evidenciar variados modos de atuação do racismo, a incapacidade de setores da sociedade de aceitar possam os negros cultuar seus orixás, cultivar o seu acolhedor modo de vida, modo incapaz de excluir qualquer ser humano, de qualquer origem, cor, classe social, credo. É uma religião com a qual o Brasil tem muito a aprender.

O professor, intelectual, o sábio Muniz Sodré, entrevistado sobre o último livro dele, “O fascismo da cor”, defende a necessidade de combater o racismo pela aproximação. O morar junto, a vizinhança na escola, no trabalho, nas relações amorosas. Considera ser o Brasil um país de grandes oportunidades de aproximação. “Temos de pensar as diferentes formas de existir no Brasil e aprender com elas”. Sabe onde não se encontra racismo?, pergunta e responde:

- No Axé Opô Afonjá, no candomblé de Menininha do Gantois, no terreiro da Casa Branca, nas rodas de capoeira.

Será que não pode vir daí uma lição? – ele pergunta.

Tá legal, não é que as pessoas sejam perfeitas.

São do mundo.

- Mas há modos de vida ali que são antirracistas. São casos pequenos, mas é do pequeno que você começa a pensar o grande. Foi assim que Davi matou Golias.

Não tenho a visão tão generosa e otimista do professor Muniz Sodré. Creio que o problema é maior, a exigir políticas públicas de educação, de cultura, e mudanças nas condições de vida do povo. E, sobretudo, mudança de cultura, a reclamar tempo e persistência. E é muito provável seja tudo isso também parte do pensamento do professor, incapaz de abranger tanta coisa numa entrevista. Respeito muito a visão dele e, como ele, creio na possibilidade do candomblé nos ensinar muito.

Pela generosidade, acolhimento, pela capacidade de abraçar, congregar, nos ensinar o quanto o racismo é falta de caminho, a nos levar a lugar nenhum, a não ser o caminho da violência, do ódio, da exclusão, o avesso do avesso de uma sociedade civilizada, democrática. Isso não queremos. Contra isso, lutamos. E o candomblé é uma escola importante, essencial. A nos ensinar, a nos acolher, e nisso está coberto de razão nosso grande Muniz Sodré.

Referências

MEIRELES, Maurício. Aceito a expressão, mas racismo não é estrutural no Brasil, diz Muniz Sodré. 18/3/2023, folha.uol.com.br

SERRA, Ordep. Laudo antropolígico: exposição de motivos com vistas ao tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho como Patrimônio Histórico da Bahia.

SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha : processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto / Renato da Silveira – Salvador: Edições Maianga, 2006.

Acrescento a tais referências, as contribuições de Isaura Genoveva, ekede da Casa Branca.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros