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Ao longo dos 68 anos, CNPq e Capes desenvolveram um sistema de universidades públicas, gratuitas e de qualidade responsável por mais de 90% da pesquisa científica do país

No início dos anos 2000 o economista sul-coreano, situado na Inglaterra, Ha Joon Chang publicou um livro que ganhou atenção acadêmica e extra-acadêmica no mundo e também no Brasil. O argumento central de Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica é mostrar como países ricos adotam medidas e políticas com a intenção de chutar a escada que os levou ao desenvolvimento, impedindo que os países pobres alcancem o lugar por eles ocupado. Além de recomendar a leitura, tomo emprestada a ideia do livro para refletir sobre os recentes anúncios de cortes orçamentários na educação superior. Ao que parece, estamos, nós mesmos, chutando a escada do desenvolvimento.

Na última semana, o Ministério da Educação fez o terceiro anúncio (em 9 de maio; 4 de junho e 2 de setembro) sobre o assunto somente neste ano: 5.613 bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado financiadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes) serão cortadas já neste mês. Considerando os dois cortes anteriores, ao todo a Capes vai cortar 11.811 bolsas de estudos. Com isso, o governo pretende reduzir pela metade os R$ 4,25 bilhões de orçamento previstos para o órgão em 2020 e economizar 9% no orçamento geral do Ministério da Educação (MEC). As bolsas ficarão “congeladas”, como vem sendo apelidada a medida pelo governo, pelo período de quatro anos. A previsão de “economia” na Capes em 2019 é de R$ 37,8 milhões, e para os próximos quatro anos, de R$ 544 milhões. Outro órgão em risco é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que também financia bolsas de estudo de nível superior, este ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Está garantido o pagamento do mês de agosto dos mais de 79 mil bolsistas do CNPq, porém ainda há incerteza em relação aos meses seguintes.

Aproveitando o ensejo da perspectiva histórica de Ha Joon Chang, vale recuperar brevemente o contexto da implantação dos dois principais órgãos de apoio e fomento à pesquisa no Brasil. O ano foi 1951, na esteira da criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e dos acalorados debates sobre desenvolvimento, que levaram à criação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), ambos em 1948.

Em 15 de janeiro de 1951 foi instituído o CNPq, em lei sancionada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Posteriormente, em 11 de julho do mesmo ano, decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas instituiu a Capes, cujo primeiro secretário-geral foi o grande educador Anísio Teixeira. O debate e os esforços pela existência de órgãos de apoio à pesquisa no Brasil remontam aos anos 1920, estimulados sobretudo por integrantes da Academia Brasileira de Ciências. Em 1931 este fez uma recomendação formal pela criação de um Conselho de Pesquisas, o qual deveria dedicar-se prioritariamente à modernização da produção agrícola.

Ao longo dos 68 anos de história, CNPq e Capes construíram uma estrutura de pesquisas de alcance nacional, envolvendo todas as áreas do conhecimento. Desenvolveram a educação superior, com um sistema de universidades públicas, gratuitas e de qualidade que é responsável por mais de 90% da pesquisa científica do país. Percalços e desafios nunca deixaram de existir. Lembramos, por exemplo, da Medida Provisória de Fernando Collor que em 15 de março de 1990 extinguiu a Capes. Menos de um mês depois, e após muitas manifestações contrárias, o órgão foi novamente recriado. De fato, não há dúvidas sobre o saldo positivo dessas instituições, considerando os diversos níveis educacionais. A esse respeito, merece destaque um salto importante, dado em 2007, quando, por unanimidade, o Congresso Nacional apoiou proposta do governo de estender as competências da Capes para o ensino básico. Além de coordenar o alto padrão do sistema nacional de pós-graduação brasileiro, ela passou a induzir e a fomentar a formação inicial e continuada de professores para a educação básica, com a criação da Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica. Mais de 330 mil professores das escolas públicas estaduais e municipais que atuavam sem formação adequada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) puderam iniciar cursos gratuitos de licenciatura.

Sabe-se que nenhuma nação conseguiu se desenvolver sem apoiar e fomentar as pesquisas científicas, a inovação e a educação. O desenvolvimento de patentes nas mais diversas áreas, a concepção de máquinas, a elaboração de modelos econômicos e de ideias e teorias que explicam a sociedade não se restringem ao desenvolvimento científico, mas têm relação e implicações diretas na vida das pessoas. Importante mencionar também esforços da academia brasileira, e de outros países do mundo, no sentido de dialogar com e promover outros saberes e formas de conhecimento. A recente expansão do ensino superior brasileiro democratizou as universidades não somente em números e em cores – com as cotas socioeconômicas e raciais, para negros, indígenas –, mas (timidamente) começou a abrir espaços para outras epistemologias, ontologias e formas de conceber o mundo, trazidas por essa diversidade de sujeitos.

Retomando a metáfora da escada, ressaltamos que o objetivo de alcançá-la e de subir os degraus que os países ricos tentam chutar não é somente uma questão de ocupar posições em rankings científicos e econômicos internacionais, mas de desenvolver capacidades, de estimular descobertas, de dar sentido à vida da espécie humana, enfim, de promover o bem-estar comum, de seres humanos e da natureza. Todo esse longo esforço coletivo se vê gravemente ameaçado e já sofrendo retrocessos.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)