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O capital está destruindo a terra. Defender o meio ambiente é um imperativo dos dias de hoje. Massacra os trabalhadores, deixando-os ao relento absoluto. O cenário apocalíptico não é um delírio

Ouvindo o alegre rumor da cidade, Rieux
pensava que essa alegria estava sempre
ameaçada. A multidão festiva ignorava o
que se pode ler nos livros: o bacilo da peste
não morre nem desaparece, fica dezenas de
anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera
com paciência nos quartos, nos porões, nas
malas, nos papéis, nos lenços – e chega talvez
o dia em que, para desgraça e ensinamento
dos homens, a peste acorda os ratos e os manda
morrer numa cidade feliz. (Último parágrafo de
A Peste. CAMUS, Albert. Tradução de Graciliano
Ramos. 2ª. Ed. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora, 1973, p. 185.)

Estava a um canto. Relegado, condenado ao ostracismo. Aos frangalhos. Nem sei como chegou às minhas mãos, algum dia. Não sei por que resolvi ocupar-me dele novamente, depois de algum tempo. Nem fazia tanto, eu o havia lido. Edição da Nova Fronteira, tradução de Herbert Caro. Certeza, tinha: Doutor Fausto é dessas obras eternas. Não há exagero nesse dizer. Tomei-o de um canto baixo de minha biblioteca. O mais baixo.  Com cuidado para as páginas não se espalharem. Já imaginei entregá-lo a um encadernador. Vou fazê-lo. Deixa essa tempestade passar.

Olho o capa. Thomas Mann, olhar perdido no horizonte, pensativo. Gravata de nó largo. Lenço branco na lapela. Camisa, também branca. Paletó escuro.

Por que essa revisitação? Não creio poder responder.

Tomei do livro e fui refazendo o caminho. Olhando minhas pegadas. Que diabo, né? Não sou bom conservador de livros. Não os reservo para leituras virgens. Não digo isso com orgulho. Constatação. Tenho um jeito de ler. Sublinhar, dobrar o canto da página, comentar parecem partes constituintes, inseparáveis, da leitura. Coisa dos mais velhos? Talvez. Comecei cedo a agir assim. A errar cedo, portanto. E cavalo velho não pega marcha – dito aprendido com meu pai nas lidas do campo, menino ainda.

Por que voltar a Doktor Faustus? Por sua natureza de obra insuperável, eterna?  Sim, o leitor me interpelaria, há várias outros livros eternos. Por que ele?

Não, peço ao leitor permitir-me seguir tentando encontrar a resposta enquanto escrevo. Só sei do impulso, e enquanto sigo a voz do inconsciente, me embrenho na floresta, quem sabe descubra as razões. O romance é um mergulho histórico, cultural, antropológico, psicanalítico cobrindo o período do flagelo de duas guerras mundiais. E sobretudo vai ao âmago do nazismo, com todas as suas trágicas consequências. Escrito quase a quente, primeira edição surgida em 1947.

Civilização e barbárie

Divido-me entre o considerado protagonista, o músico Adrian Leverkühn, e o narrador, professor Serenus Zeitblom. Os dois me interessam igualmente. A tragédia alemã, o horror, a violência são expressos sem meios-termos por Zeitblom, a seu modo o homem da razão, do esclarecimento. Revela um povo inebriado com o surgimento de um demagogo, um sujeito tosco, no início dos anos 1930, o povo a segui-lo rumo à barbárie, ao banho de sangue. Ninguém, nem ele, Zeitblom, pode considerar-se inocente dos inomináveis crimes contra a humanidade.

Há momentos de identificação entre civilização e barbárie, e aqui há traços do pensamento de Walter Benjamin, quem sabe retirados dos ensinamentos de Theodor Adorno, parceiro de Benjamin, cuja colaboração com Mann para o romance está bastante documentada.

Ao final da guerra, Zeitblom falará da vergonha alemã exposta ao mundo, ultrapassando em muito o horror que a imaginação humana pudesse conceber. Um povo vencido cujo olhar se dirige ao nada. Sua derradeira e extrema tentativa de encontrar uma forma política própria se atolou num pavoroso malogro. O povo alemão a carregar o peso de crimes incomensuráveis. Saber ter se chegado a tudo isso com apelos estridentes do líder, a provocar nas multidões arroubos de imensa felicidade. E agora, seguirá Zeitblom, ver arrombados os espessos muros do calabouço de torturas, construído por um governo sempre devotado ao nada.

O romance é grandioso.

Devo ter voltado a Doutor Fausto porque o pacto com o Diabo, feito por Adrian Leverkühn, é fascinante. Pelos personagens construídos, o Diabo incluído, e pelo poder da metáfora, a nos acompanhar até os dias atuais. Leverkühn se entrega ao Demônio em troca de tornar-se um gênio musical por 24 anos, sem direito a amar ninguém, e depois disso saber-se nas mãos Dele, sem contemplação. Não tentasse quebrar o acordo, e sofreria as consequências.

Amou o sobrinho Eco, uma criança, e o amou perdidamente, e sentiu a ira vinda das profundezas do inferno – o menino morreu em meio a sofrimentos incríveis, para seu desespero. O preço do acordo com o Diabo nunca é pequeno. Leverkühn, ao fim, alertará: quem convidá-lo à sua mesa comprometerá sua alma e tomará a carga da culpa dos tempos sobre a própria nuca, e acabará condenado. Foi seu destino, e é o de todos os signatários de pactos com ele.

Pacto mortal com o capitalismo

Deu-me de pensar no pacto com o Diabo feito pela humanidade com o capitalismo. Será esse o recado de Thomas Mann com seu Doutor Fausto? Um dos recados? O flerte evidente do protagonista com o Apocalipse não está vinculado ao provável desenlace desse pacto? Feito sob promessas de uma nova aurora, de liberdades, de livrar-se de reis, de predomínio da razão, de liberdade, igualdade, fraternidade, sobreveio rapidamente a cobrança. O preço, alto. E os custos crescem assustadoramente nos dias atuais, que o Diabo não brinca, nem dorme.

O capital está destruindo a terra. Defender o meio ambiente é um imperativo dos dias de hoje. Enquanto é tempo. Massacra os trabalhadores, deixando-os ao relento absoluto. O neoliberalismo, com a hegemonia absoluta do capital financeiro, agrava tudo. O cenário apocalíptico não é um delírio, teoria conspiratória, algo semelhante. Não é não. Dizer o capital não tem alma seria um truísmo descabido, despropositado, desnecessário. Nunca teve, nunca terá.

Nem quando a crise parece terminal, o capital se mexe. Sempre volta os olhos para o Estado, pedindo socorro. Quem precisa desesperadamente de ajuda é a classe trabalhadora, empregados, desempregados, deserdados de tudo. Impressionante observar nas últimas horas, diante da pandemia, uma espécie de plano Marshall às avessas de Bolsonaro, penalizando o mundo do trabalho, ajudando exclusivamente o capital. E creio virá mais. Mais ajuda ao capital.

Claro, sei, Bolsonaro não pode ser parâmetro. Tantos dirigentes mundiais tratam o coronavírus de outro modo, com mais responsabilidade. Tentando ao menos aplacar o mal, contê-lo. Mas, convenhamos: não é o capital a abrir as burras, nunca. A nuvem de dinheiro sobrevoa o mundo, intacta, nas mãos de poucos, pouquíssimos, concentração brutal de renda. Sempre apela-se ao Estado, tão vilipendiado nesses tempos neoliberais. A saúde pública é acionada, os recursos públicos são a salvação em meio à hecatombe.

Terra e humanidade em risco

O coronavírus é uma espécie de Deus ex machina a subitamente revelar a gravidade do pacto, a nos fazer pensar no capitalismo, do quanto mal ele ainda pode fazer. Um Deus ex machina a nos despertar quanto à causa comum, a nos obrigar ao confinamento e ao exercício da solidariedade, simultaneamente. A olhar a Casa Comum, a Mãe Terra, diariamente submetida a um modo de produção incapaz de conservá-la. É um alerta brutal, esse vírus, a nos acordar. A tragédia morava ao lado, a barbárie batia à nossa porta, e a humanidade, letárgica, sonolenta, observava. O vírus, um sintoma de nossa doença, muito mais profunda, decorrente de um pacto diabólico.

Walter Benjamin, a quem gosto de chamar de profeta, falava dessa tragédia muito antes. A tragédia do progresso. Tinha consciência do quanto o progresso tecnológico e econômico promovido pelo capitalismo pesava sobre a humanidade. Sua tese IX em “Sobre o conceito de história”, obra de 1940, mesmo ano em que se suicida na pequena cidade espanhola de Port Bou para não cair nas mãos dos nazistas, permanece impressionantemente atual.

Comenta sobre um quadro de Paul Klee, o Angelus Novus. Vale a pena a descrição feita por ele:

“...Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade.”

Essa tempestade, a do capitalismo, levará à catástrofe. Está levando.

Recuperar a esperança

A glória de poucos anos de Leverkühn o deixa extasiado, e ele, ao amar o sobrinho, nem se dá conta do pacto feito com o Diabo e suas consequências. O inebriante desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo ofuscou o preço a ser pago pelo pacto. Claro: alguém poderá objetar acerca do desenvolvimento do Estado de bem-estar europeu como cumprimento de promessa redentora logo após a Segunda Guerra Mundial. Promessa cumprida sob a Espada de Dâmocles da bomba atômica. Durou pouco tal Estado. Do final dos anos 1970 para cá, veio a devastação, o castigo do neoliberalismo, a hegemonia avassaladora do capital financeiro, a lembrar do preço a pagar. O Diabo não brinca, não perdoa. O capital não tem alma, nunca terá.

Os envolvidos com a política, estou incluído, não podem perder de vista a necessidade de abandonar esse pacto. O capitalismo é impelido cegamente para o futuro, como diz o anjo de Klee e essa caminhada cega leva inevitavelmente ao desastre. Há uma pergunta no ar: como vamos sair da tragédia do coronavírus?

Ela ainda está em curso, e as revoltas selvagens começaram a dar sinais de vida. A Itália, sob a tragédia da pandemia, é palco de muitas greves. Vão crescer em todo o mundo. Talvez pelo desespero, as multidões de deserdados vão se levantar. Se disso não resultar uma caminhada em direção à superação do capitalismo, estou falando em caminhada, em processo, estaremos seguindo o caminho da perdição, do Apocalipse, da morte de milhões pelo abandono, pela fome, e pela peste, presente, a nos acicatar. E para a destruição da Casa Comum, nossa terra.

Lembro uma parte do final de Doutor Fausto, Serenus Zeitblom, em 1940, refletindo junto à cova de Adrian Leverkühn:

“A essa altura, a Alemanha, as faces ardentes de febre, no apogeu de selvagens triunfos, cambaleava, ébria, a ponto de conquistar o mundo, graças a um pacto ao qual tencionava manter-se fiel e que assinara com seu sangue.”

Indaga, à beira do caixão já envolvido pela terra: “Quando alcançará o fundo do abismo? Quando raiará, em meio à derradeira desolação, um milagre superior a qualquer fé, a luz da esperança?”

A pergunta de mais de 70 anos atrás ressoa em nossos ouvidos. O fundo do abismo pode não estar longe.

Na boa tradição gramsciana, creio na máxima do pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. É preciso reconhecer a realidade com o pessimismo da inteligência. E produzir milagres com a força da política. Nunca, no entanto, deixar de ligar as duas pontas. Olhar as circunstâncias, o presente. Nunca perder a visão estratégica.

Walter Benjamin aproximava-se de Gramsci na condenação a uma visão otimista do progresso, crença ingênua segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas nos levaria ao paraíso, ao socialismo.

Ia mais longe: existem seres humanos, explorados e oprimidos nos quais o sofrimento já matou até a capacidade de eles esperarem um futuro animador. Por isso, Benjamin dirá, melancolicamente: “A esperança só nos é dada por consideração àqueles que não têm mais esperança.”

Por tudo isso, em meio a essa tempestade, não apenas a causada pelo coronavírus, nosso Deus ex machina, mas muito mais a hecatombe provocada até agora pelo capitalismo, urge uma política que pense a caminhada para romper o pacto com o Diabo.

O capitalismo é um desastre anunciado.

A barbárie.

A peste.

Se ele persiste, sabemos o final.

E sem alarde, é preciso dizer: o tempo é curto.

Precisamos correr em nome dos que perderam a esperança.

Para que a recuperem.

Referências

KONDER, Leandro. Walter Benjamin: o Marxismo da Melancolia. Rio de Janeiro: Campus, 1988, 112 p.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005, 160 p.

MANN, Thomas. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, tradução de Herbert Caro, 3ª edição.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I e II), entre outros