A pandemia de Covid-19 expôs de forma explícita e até cruel a fragilidade da economia brasileira em setores estratégicos, deixando claro o quanto o país ainda depende de insumos estrangeiros para manter seu funcionamento básico. No entanto, apesar dos alertas, pouco foi feito para reduzir essa vulnerabilidade. Agora, com as tensões geopolíticas envolvendo os Estados Unidos e a possibilidade de sanções que afetem serviços essenciais, como a infraestrutura digital, o Brasil precisa urgentemente repensar sua dependência externa. Se não agirmos rapidamente, corremos o risco de ver setores inteiros da economia paralisados por falta de insumos ou por retaliações comerciais.
Durante a crise sanitária global, quando éramos governados por um presidente negacionista, o Brasil enfrentou graves dificuldades para adquirir insumos médicos, componentes farmacêuticos e equipamentos de proteção, todos essenciais para o combate ao vírus. Até mesmo máscaras sanitárias e respiradores faltaram, e precisamos apelar para fornecimento externo. A dependência de importações de países como China e Índia deixou o sistema de saúde brasileiro em situação crítica, com atrasos na produção de vacinas e medicamentos. Apesar disso, não houve um esforço consistente para desenvolver uma cadeia produtiva nacional capaz de suprir essas demandas estratégicas.
Um exemplo emblemático é o setor de fertilizantes, essencial para o agronegócio brasileiro, responsável por quase 30% do PIB nacional. O Brasil importa cerca de 85% dos fertilizantes que utiliza, sendo altamente dependente da Rússia, Canadá e Marrocos. O Brasil, a cada ano, importa 75% dos fosfatados, 85% dos nitrogenados e 95% do potássio de que necessita. Em 2022, com a guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia, os preços desses insumos dispararam, ameaçando a produção agrícola nacional. Se houvesse um boicote direto ao Brasil, o impacto seria catastrófico: o país poderia ver sua safra de grãos, como soja e milho, reduzida drasticamente, afetando não apenas a economia, mas também a segurança alimentar.
Outra área crítica é a infraestrutura digital. O Brasil depende quase que totalmente dos Estados Unidos para serviços essenciais como nuvem computacional (cloud computing), serviços de mensageria e até mesmo equipamentos de telecomunicações. Grandes empresas brasileiras utilizam plataformas como AWS (Amazon), Google Cloud e Microsoft Azure para operar seus sistemas. Se o governo norte-americano decidir impor restrições comerciais ao Brasil – seja por questões políticas, como alinhamento com os Brics (China e Rússia), seja por pressões diplomáticas –, o país poderia enfrentar um colapso em serviços bancários, comércio eletrônico e até mesmo em operações governamentais.
Além disso, a indústria de semicondutores, base da tecnologia moderna, é outra frente de extrema dependência. O Brasil não possui fábricas de chips complexos e importa praticamente todos os componentes eletrônicos essenciais para a produção de celulares, computadores e equipamentos industriais. Em um cenário de conflito comercial, o país ficaria completamente vulnerável a interrupções no fornecimento.
Para reduzir esses riscos, o Brasil precisa adotar medidas urgentes em três frentes:
1.Investimento em pesquisa e produção nacional
O país deve priorizar a criação de polos tecnológicos e industriais capazes de produzir insumos estratégicos, como fertilizantes, medicamentos e componentes eletrônicos. O Plano Nacional de Fertilizantes 2050 (PNF 2050), divulgado em 2022 pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, vinculada à Presidência da República, fixou como meta alcançar em 2050 produção doméstica capaz de atender de 45% a 50% da demanda por fertilizantes. Não é possível esperar tanto! A Embrapa, por exemplo, poderia conduzir pesquisas para desenvolver fertilizantes alternativos, reduzindo a dependência de importações. Na área de semicondutores, a Lei nº 14.968/2024, prevê, como parte da Política Industrial e Tecnológica, o Programa Brasil Semicondutores (Brasil Semicon), com o objetivo de incentivar o avanço tecnológico e o fortalecimento do ecossistema de pesquisa, desenvolvimento, inovação, design, produção e aplicação de componentes semicondutores, displays e painéis solares no país, e autoriza a atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) na estruturação e no uso de instrumentos de apoio a empreendimentos novos ou já existentes, e reduz tributos federais (IOF, IPI, PIS/Cofins, Imposto de Importação) na aquisição de insumos, equipamentos e serviços relacionados às atividades de desenvolvimento tecnológico. Empresas como a Ceitec, criada em 2008, e que Bolsonaro pretendia privatizar, que tem enorme potencial no segmento de semicondutores, indispensáveis na fabricação de smartphones e computadores, carros, rastreabilidade de produtos, bens e serviços, poderiam ser priorizadas e liderar os investimentos e pesquisa nesse setor sensível da economia nacional.
2.Diversificação de fornecedores
Em vez de depender de um único país (como os Estados Unidos na área digital ou a Rússia em fertilizantes), o Brasil deve buscar parcerias diversificadas, inclusive dentro do bloco dos Brics, para garantir resiliência em caso de sanções. A cooperação com a China, que já ocorre no setor aeroespacial, e que vem avançando nessa área, inclusive no desenvolvimento de inteligência artificial, deve ser ampliada, mas preservando a soberania digital do país.
3.Proteção de infraestruturas críticas
O governo deve criar políticas para nacionalizar serviços essenciais, como armazenamento de dados e processamento digital, incentivando empresas nacionais a desenvolver alternativas às gigantes norte-americanas. Essa alternativa, porém, não deve converter o Brasil em um mero “hub” para empresas estrangeiras se instalarem, explorando recursos hídricos e energéticos do país, mas deve ser combinada com investimentos privados e estatais nacionais, para que a infraestrutura de hardware e software sejam desenvolvidas internamente, como têm feito a China e a Rússia.
O país possui matéria-prima em todos esses setores, especialmente nos campos dos minerais críticos ou terras raras, e dispõe de instituições e profissionais qualificados para liderar essa revolução, embora tenha faltado vontade e decisão política dos governos anteriores. O Presidente Lula parece dispostos a liderar esse processo de redução de dependência do Brasil de potências estrangeiras.
A hora é agora: chegou o momento de o Brasil fortalecer sua indústria e o governo atual reúne todas as condições para liderar esse salto de qualidade na modernização e independência do país. A pandemia já havia mostrado os perigos da dependência externa, mas o Brasil ignorou o alerta. Agora, com a escalada de tensões geopolíticas e o risco real de sanções que possam afetar setores vitais, não há mais tempo a perder. Se o país não agir para fortalecer sua autonomia em áreas estratégicas – como agroindústria, tecnologia e saúde –, ficará à mercê de decisões externas que podem paralisar sua economia. A soberania nacional depende da capacidade de produzir o essencial dentro de nossas fronteiras e fortalecer capacidades de empresas e da força de trabalho brasileiras. O Brasil não pode mais adiar essa discussão.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi direito de Documentação do Diap e é membro da Câmara Técnica de Transformação do Estado, do Ministério da Cestão e da Inovação em Serviços Públicos, do Conselho Superior de Associação Brasileira de Relações Institucionais (Abrig) e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – o Conselhão.