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Há motivo suficiente para justificar um processo de impeachment, considerando que já nos aproximamos de 500 mil mortes em decorrência da ação ou omissão governamental

As Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), como regra, perderam destaque como meio de investigação desde que entraram em vigor as novas leis de transparência – conflito de interesse, lei de acesso à informação, de responsabilização da pessoa jurídica e de delação premiada – mas continuam importantes, especialmente quando o tema objeto de investigação possui apelo popular e o governo investigado não conta com maioria no colegiado, como é o caso da CPI da Covid.

A CPI da Covid-19, mesmo tendo ampliado o seu escopo inicial – que era investigar as omissões e ações do governo federal em relação à pandemia –para incluir a investigação de eventuais desvios de recursos federais repassados a estados e municípios, persiste como uma importante oportunidade para revelar ao país o governo Bolsonaro de corpo inteiro, seja sua incompetência operacional, seja suas opções ideológicas.

Alguns fatores podem aliviar um pouco a pressão sobre o governo e o seu grau de desgaste. São eles:  a ampliação do escopo da CPI, a perda de poder das CPIs em geral e o fato de a CPI contar com um presidente independente, já que o natural seria que ela fosse presidida pelo autor do requerimento, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), um opositor contundente, que aceitou o cargo de vice-presidente. Mas, embora o governo possa ter sido favorecido por esses três aspectos, sua sorte poderá ser selada com base nos resultados desse colegiado.

O desfecho da CPI, de maioria oposicionista, dependerá, em grande medida, de dois atores-chave: o presidente, senador Omar Aziz (PSD-AM), e do relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O primeiro, considerado independente, possui poder de agenda e controla as reuniões, as votações e as convocações de autoridades, mas não detém o controle quanto à eventual prorrogação, que depende de requerimento de um terço da Casa. O segundo, crítico feroz do governo, possui o principal poder, que é o de inquirir os investigados, elaborar o relatório e propor punições e mudanças legais para evitar que as irregularidades se repitam.

Para chegar com segurança ao seu objetivo, o comando da CPI montou uma estratégia que consiste em investigar, num primeiro momento, o chamado tratamento precoce, um composto de remédios, formado por ivermectina, hidroxicloroquina e azitromicina, sem qualquer comprovação científicano combate à Covid-19, ouvindo as autoridades com participação na recomendação desse protocolo pelo Ministério da Saúde. Na sequência, pretende investigar a omissão governamental na aquisição de vacinas e confrontá-la com a suposta decisão do presidente de determinar a imunidade de rebanho, desconsiderando o risco de colapso do sistema de saúde. E, finalmente, investigar eventuais desvios de recursos enviados a estados e municípios para o combate à Covid-19.

As primeiras audiências, em razão da lógica do trabalho de investigação do comando da CPI, foram com os ex-ministros da Saúde e o atual, depois serão ouvidas outras autoridades e cidadãos que tenham informações sobre as ações e omissões governamentais no enfrentamento à pandemia, incluindo especialistas e os ministros da Casa Civil, da Defesa e da Economia; e também profissionais de saúde e autoridades estaduais e municipais, tanto em relação aos problemas e falhas relacionadas a ações e omissões no atendimento aos doentes, como no caso de Manaus, que chegou a faltar oxigênio, quanto nas situações de eventuais desvios de recursos repassados a estados e municípios.

As reações do governo à CPI tem sido, de um lado, determinar a aceleração da aquisição de vacinas, e, de outro, desqualificar os objetivos e os integrantes do colegiado, num claro sintoma de temor de responder por crime comissivo por omissão, que ocorre quando o autor do crime age a fim de impedir que alguém pratique um ato que salvaria o bem jurídico, como quando Bolsonaro vetou a compra de vacinas, ou mesmo de ação deliberada, ao promover e incentivar aglomeração e desobediência a medidas de lockdown, ou caso seja comprovada a omissão na adoção de medidas para assegurar o atendimento à população, ou até mesmo no caso da hipótese de imunidade de rebanho, que parte da ideia de que havendo certo patamar de infectados, a população adquiriria a imunidade, o que seria caracterizada como atitude genocida.

Em qualquer dos casos, haveria motivo suficiente para justificar um processo de impeachment, considerando que já nos aproximamos de 500 mil mortes em decorrência da ação ou omissão governamental. Porém, mesmo com a gravidade da situação e do número recorde de mortes, o presidente da República continua negacionista e estimulando aglomeração e recusando-se a seguir os protocolos recomendados, como o uso de máscara e o isolamento social, como quem quer levar a população para o abate. É algo patológico, inacreditável.

A CPI, considerando a postura e ações do presidente da República, poderá facilmente colher evidência que entre a vida e a morte, a opção do chefe do Poder Executivo é pela segunda. Enquanto o governo resistia à aquisição de vacina, mesmo frente a uma verdadeira mortandade, o presidente se empenhava pessoalmente em editar decretos para liberar a aquisição de armas e munição, num claro incentivo à morte.

A sorte está lançada. Trabalha-se com três cenários para os resultados da CPI: um modesto, que seria um mero desgaste e perda de popularidade do governo, com reflexos sobre a campanha de reeleição; um intermediário, que consistiria no reconhecimento da omissão governamental, com pedido ao Ministério Público de abertura de processo por crime comum contra os responsáveis, especialmente ministros da Saúde; e um agudo ou grave que resultaria no reconhecimento da culpa direta do presidente, com o consequente pedido de impeachment.

Além disso, no plano internacional, o resultado da CPI poderá resultar na responsabilização, também, do presidente, como já ocorreu em casos de governantes que foram levados a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional.

Esperamos que prevaleça a verdade e os responsáveis sejam investigados e punidos, fazendo justiça às milhares de pessoas que perderam parentes e amigos em decorrência da teimosia de um governo, que em lugar seguir a ciência, prefere acreditar em charlatanismo. Ser eleito presidente, ainda mais no contexto em que Bolsonaro venceu a eleição, não confere a ninguém o direito de tripudiar sobre o sofrimento do povo.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Dialógico Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”