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E o PT, ali naquele início dos anos 1980, era tudo. Era um partido político, mas era um partido político novo, diferente

Eu não fui ao famoso ato de fundação no Colégio Sion ­ afinal, o que ia fazer lá uma adolescente que nem era militante secundarista nem nada? Meu pai e minha mãe estiveram lá, bem como minha tia-avó Lélia e meu tio-avô Fúlvio. E, mesmo que não tenha estado de corpo presente, sabia muito bem o que ele significava: a culminação de todas as lutas de resistência do passado recente e uma promessa de futuro.

A reunião do Sion era o resultado de uma história muito familiar para mim ­ cresci numa família politizada, que passou a década de 1970 resistindo e participando da maneira que era possível. Meus pais tinham sido do Partido Socialista, antes de 1964. Meus irmãos mais velhos estavam na USP, na reconstrução do movimento estudantil em 1977. Já no final da ditadura, vi meus pais se entregando com entusiasmo à luta pela anistia e acompanhando com enorme interesse as greves do ABC (e a tia Lélia, furiosa com não sei qual articulista da época, brandindo o jornal na sala de jantar e dizendo: "Esse Lula é um gênio!").

E o PT, ali naquele início dos anos 1980, era tudo. Era um partido político, mas era um partido político novo, diferente. Ainda que eu não conhecesse os velhos, de antes do AI-2, a gente sabia que era verdade que era mesmo diferente de tudo que estava lá. Era constituído por operários sisudos, bancários combativos, professores rebeldes e outros trabalhadores sérios, que tinham feito greves importantes para derrubar a ditadura, e também por hippies tardios, verdes avant la lettre, gente que tinha voltado do exílio na França falando em micropolítica, rádios livres, Foucault, Deleuze e Guattari. O PT tinha o material de propaganda mais charmoso e pop de todos os partidos políticos ­ a estrela, o bóton, as camisetas... Fazia festas memoráveis.

Depois, vieram as eleições. Essa associação de todo mundo que estava contra a ditadura e que parecia poder abrigar utopias de diversas colorações começou mesmo a se tornar um partido, brigando nas eleições. É claro que não íamos eleger o Lula governador em 1982, mas e daí? O importante era fazer campanha, sair na rua. A boca de urna ainda não era proibida e íamos lá, com material de propaganda contado, falando com cada eleitor, tentando fazer frente aos partidos mais ricos, cujos boqueiros simplesmente atiravam bolos de filipetas na cara das pessoas...

Na campanha pelas eleições diretas, o primeiro comício, na praça Charles Miller, era um mar de bandeiras vermelhas com estrela branca. A campanha era nossa; depois é que vieram os outros. Nos comícios maiores, da Sé e do Anhangabaú, também estávamos lá, mais organizados e aguerridos que os outros.

Em 1989, era meu primeiro voto também, pelo menos para presidente. Nós íamos ganhar, parecia. Tínhamos dado um susto em todo mundo e eleito a prefeita de São Paulo, no ano anterior. A campanha ia tão bem... Na véspera do segundo turno, entretanto, meu pai chegou do último debate, aquele terrível e famoso, dizendo: "Perdemos". Os mais jovens achamos que era pessimismo da maturidade; estávamos enganados.

Perderíamos mais duas vezes, como se sabe. Faríamos prefeituras, teríamos parlamentares bons de voto, estaríamos na arena de todas as discussões políticas importantes, mas nada de fazer o presidente. Então, em um dia de outubro, grávida, de camiseta vermelha, eu tomaria o metrô para a Paulista junto com amigos. Era 2002, o Lula estava lá, diferente de tudo.

Meu pai, não. Ele morreu entre a derrota de 1994 e a de 1998, nem viu chegar o aniversário de 20 anos. Muitas vezes, tento imaginar o que ele estaria pensando de tudo isso que está aí: as crises políticas, os dois mandatos, as realizações do governo, a popularidade quase inabalável do Lula... Não chego a muito lugar. Só acho que, como eu, ele estaria surpreso de ter feito parte de tão extraordinária história.

Bia Abramo é jornalista, filha de Perseu e Zilah, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate