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A experiência recente demonstra que um Legislativo dominado pela oposição não hesita em transformar as emendas impositivas em armas de paralisia administrativa, ou até mesmo de patrimonialização do orçamento

A apropriação do orçamento público pelo Congresso Nacional, por meio de emendas impositivas, não é um fenômeno isolado, mas um processo histórico que se intensificou em momentos de fragilidade do Executivo, revelando uma assimetria de poder que mina o equilíbrio federativo e a eficácia das políticas públicas. A trajetória desse avanço parlamentar sobre o orçamento demonstra uma estratégia legislativa de empoderamento dos parlamentares em relação ao governo federal, retirando do Poder Executivo a discricionariedade sobre parcela do orçamento não vinculado, e com isto limitando os poderes do presidente da República sobre o Orçamento Público, especialmente de chefes do Poder Executivo com visão inclusiva.

O marco inicial dessa escalada ocorreu no segundo governo Dilma Rousseff, em 2015, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 86, que tornou impositivas as emendas individuais até 1,2% da receita líquida corrente. A medida, embora apresentada como forma de descentralizar recursos, foi antes uma concessão do Executivo enfraquecido a um Congresso ávido por maior controle sobre o orçamento. A aprovação da PEC de 22/2000, após 15 anos de tramitação, e que teve tramitação acelerada a partir de 2013, não foi casual: coincidiu com o início da crise política que culminaria no golpe do impeachment de Dilma, evidenciando como a fragilidade governamental abre espaço para a expansão do Poder Legislativo sobre as finanças públicas.

No governo Temer, esse processo se aprofundou. Com o presidente sob a ameaça constante de denúncias e impeachment, o Congresso não apenas implementou as emendas impositivas como ampliou sua influência sobre a execução orçamentária. A dependência de Temer em relação ao parlamento transformou o orçamento em instrumento de barganha, consolidando uma prática que seria levada ao extremo no governo seguinte. A relação promíscua entre Executivo e Legislativo, nesse período, pavimentou o caminho para o esvaziamento da capacidade de planejamento do Estado, subordinando políticas públicas a interesses paroquiais.

O governo Bolsonaro representou o ápice desse movimento, com três emendas constitucionais que transferiram poder orçamentário em escala sem precedentes. A EC 100/2019 tornou impositivas as emendas de bancada (1% da receita), a EC 105/2019 criou as "emendas pix" (repasses sem fiscalização direta a estados e municípios), e a EC 126/2022 elevou o piso das emendas individuais para 2% da receita corrente líquida do exercício anterior, e a mesma EC 105 introduziu na CF a regra de que “a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”, ou seja, abrindo caminho a novas obrigações de execução do orçamento.

O chamado "orçamento secreto" coroou esse processo, institucionalizando a opacidade e o clientelismo. O Executivo, longe de resistir, negociou esses mecanismos em troca de sobrevivência política, revelando a instrumentalização do orçamento como moeda de troca.

A EC 126, de 2022, ampliou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida do exercício anterior o limite para as emendas individuais, dos quais a metade deve ser destinada a ações e serviços públicos de saúde, e estabeleceu uma divisão entre senadores e deputados: do limite, 1,55% é para as emendas de deputados e 0,45%, de senadores.

No atual governo, a tentativa de reverter parte desse quadro esbarrou na resistência congressista. A obrigatoriedade de destinação de parte das emendas à saúde foi uma vitória relativa, mas insuficiente diante do volume de recursos ainda controlado por parlamentares. A promessa de transparência também enfrenta obstáculos: mesmo com a atuação da CGU, TCU, MPF e STF, o Congresso resiste a rastreabilidade das emendas, mantendo um sistema que favorece o clientelismo. O fato de cada deputado parlamentar dispor de até R$ 43,260 milhões e cada senador R$ 79,4 milhões anuais em emendas individuais, e cada bancada estadual R$ 529,6 milhões, totalizando R$ 42,9 bilhões em emendas impositivas1, ilustra o tamanho do problema: o orçamento discricionário do Executivo foi tão corroído que restam poucos recursos para políticas estruturantes.

A cronologia desse avanço congressual sobre o orçamento expõe uma distorção grave na democracia brasileira. O orçamento, que deveria ser instrumento de planejamento estratégico, transformou-se em moeda de barganha dos parlamentares, com o Legislativo agindo menos como fiscalizador e mais como gestor paralelo, definindo prioridades sem accountability. Enquanto o Executivo, em minoria, for forçado a ceder espaço em troca de apoio, a sociedade paga o preço com a pulverização de recursos e o enfraquecimento de políticas nacionais. A menos que haja uma reforma orçamentária profunda - incluindo a revisão do caráter impositivo e maior transparência -, o ciclo de captura do orçamento por interesses particulares persistirá, corroendo a capacidade do Estado de promover desenvolvimento equitativo. Ao apreciar a ADI 7.697, sob a relatoria do Ministro Flávio Dino, o STF vem adotando decisões que fortalecem a necessidade de transparência e adequação técnica. Segundo a decisão liminar adotada em setembro de 2025, “não é compatível com a Constituição Federal a execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade, de modo que fica impedida qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares”.

Por isso, nas eleições de 2026, não basta eleger um presidente progressista: é fundamental conquistar uma maioria coerente na Câmara e no Senado. Caso contrário, um eventual governo de esquerda enfrentará uma dupla asfixia - o sequestro do orçamento por um Congresso hostil e o estrangulamento sistemático de políticas sociais. A experiência recente demonstra que um Legislativo dominado pela oposição não hesita em transformar as emendas impositivas em armas de paralisia administrativa, ou até mesmo de patrimonialização do orçamento. Além disso, projetos de transferência de renda, ampliação de direitos e investimento em áreas estratégicas serão alvo de boicote legislativo. A lição é clara: sem maioria parlamentar alinhada, qualquer agenda redistributiva será sabotada na origem, seja pelo desvio de recursos para emendas clientelistas, seja pela obstrução pura e simples. A disputa em 2026, portanto, não se resume ao Palácio do Planalto - decidirá se o país terá um governo capaz de governar ou refém de um Congresso que troca direitos por orçamento.

1 A receita corrente líquida, em 2024, foi de R$ 1,43 trilhões. Essa é a base para a previsão do limite de emendas impositivas para 2026, pois é considerada a receita “receita corrente líquida do exercício anterior” ao do encaminhamento do projeto orçamentária. O PLOA 2026, portanto, usa a receita corrente líquida de 2024.

Antônio Augusto de Queiroz é analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi diretor de Documentação do Diap e é membro da Câmara Técnica de Transformação do Estado, do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República – o Conselhão.