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O recente avanço da direita no mundo inteiro tem levado o cinema a fazer, assim como já fez no passado, excelentes reflexões sobre o fenômeno

O recente avanço da direita no mundo inteiro tem levado o cinema a fazer, assim como já fez no passado, excelentes reflexões sobre o fenômeno.Como as formas em que se manifesta a direita são várias, os filmes também são vários, ou de muitos tipos. Vamos tratar aqui de alguns que, em diferentes abordagens da candente questão, se tornaram marcos.

Recente e extraordinário é Ele Está de Volta (Alemanha, 2016, direção de David Wnendt), que, na craveira da sátira, examina os efeitos de uma ressurreição de Adolf Hitler hoje em dia. Por incrível que pareça, o filme mostra como a maioria dos grupos sociais na Alemanha o receberia de braços abertos, alegando diferentes razões – escandalizando o espectador, mas ao mesmo tempo provocando risos. Pensando bem, o balanço que fazemos no dia seguinte é assustador. Anos antes, outro filme alemão já cuidara de deixar o espectador nervoso. Em A Onda (Alemanha, 2008, direção de Dennis Gansel), professor do secundário faz uma experiência em autocracia com seus alunos, e, quando vê o resultado, constata que se traduz em nazismo. (Não confundir com o filme norueguês de mesmo título sobre o tsunami.)

Pode ser um filme sobre experiências em que a direita avançou tanto que desequilibrou a democracia, como a caça às bruxas do macartismo que imperou nos Estados Unidos no início da Guerra Fria, nos anos 1950, quando vagas suspeitas de esquerdismo e a exigência de delação de outros destruiu carreiras e provocou suicídios. O cinema levou bem meio século para se dar por achado e só há pouco começou a fazer esse balanço tão necessário.

Um deles foi o filme Trumbo: Lista Negra (EUA, 2016, direção de Jay Roach). Reputado roteirista pertencente ao Partido Comunista, pacifista e autor de livro contra a guerra, intitulado Johnny Get your Gun, Trumbo entrou para a famigerada Lista Negra de Hollywood e nunca mais conseguiu trabalho, tendo que assinar com pseudônimos filmes que seriam premiados. Em 1960 faria o roteiro do famoso filme Spartacus e, em meio à repercussão, enfrentou a censura tendo amigos a apoiá-lo e acabou por ser reabilitado. Outro foi o filme de George Clooney Boa Noite e Boa Sorte (EUA, 2006, direção de George Clooney), que conta a história de um âncora de TV que, com rara coragem, enfrentou os direitistas, denunciando as artimanhas desonestas e ilegais do senador McCarthy, que passou a persegui-lo. Anos antes, houve aquele que consta ter sido um precursor, Culpado por Suspeita (EUA, 1991, direção de Irwin Winkler), com Robert De Niro, que interpreta um diretor de Hollywood posto na Lista Negra por se recusar a delatar seus amigos e que vai progressivamente vendo as portas se fecharem.

Ou podem tratar de situações perturbadoras que só podem acontecer quando a direita toma o poder, como é o caso do Brasil e do Cidadão Boilesen (Brasil, 2009, direção de Chaim Litewski), o dinamarquês naturalizado brasileiro, alto executivo da Ultragás, que, além de financiar generosamente, gostava de participar da tortura, e que acabaria por ser justiçado pelos guerrilheiros.

Para que não esqueçamos o golpe de 1º de abril, origem do infame regime que duraria 21 anos, Alípio Freire filmou o documentário 1964 – Um Golpe Contra o Brasil, excelente análise dos eventos de então. Ou ainda os vários de Sílvio Tendler, pedindo destaque os recentes Os Advogados Contra a Ditadura e Militares da Democracia, ambos de 2014. Ali é resgatada a memória do golpe de 1964, quando vemos advogados na casa dos vinte anos defendendo os arbitrariamente presos e que corriam risco de vida: se não fosse a coragem desses jovens advogados, muitos mais poderiam ter sido assassinados clandestinamente. Quanto aos militares, somos informados das circunstâncias e em muitos casos assistimos aos depoimentos de alguns dos 5 mil que acabaram por ser expulsos das Forças Armadas por serem de esquerda. Ao que parece, embora já haja livros, ainda não há filmes sobre o delegado Fleury nem sobre o Cabo Anselmo.

Em Que Bom te Ver Viva (Brasil, 1989), a diretora Lúcia Murat entrevista mulheres que foram presas e torturadas durante a luta armada, como ela própria, e conseguiram sobreviver – quando tantas ficaram pelo caminho. Mais tarde faria o filme de ficção Quase Dois Irmãos (Brasil, 2005), sobre dois amigos, um negro pobre e outro pequeno-burguês, ambos destinados à mesma cadeia, um por crime comum e o outro por crime político.

Muitos são os filmes que não são aqui mencionados, e que vão desde O que É Isso, Companheiro? (Brasil, 1997, direção de Bruno Barreto), que sofreu muitas críticas, até vários documentários da maior seriedade. Toni Venturi contribuiu para o resgate desses tempos sombrios com Cabra-Cega (2005), O Velho – História de Luiz Carlos Prestes (1997) e Vocacional (2011). Sílvio Da-Rin dirigiu o importante Hércules 56 (2007), documentário que registra as negociações pela libertação de presos políticos brasileiros em troca de embaixador sequestrado.

Houve ditaduras anteriores no Brasil, a que fazem referência tanto Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos, baseado no clássico de Graciliano Ramos, comunista que cumpriu pena política na Ilha Grande, quanto Olga (2004), de Jaime Monjardim. Este conta uma história real, por longo tempo não comentada, de um crime contra a humanidade: Getúlio Vargas e Filinto Müller entregaram Olga Benário, judia, comunista e grávida, aos nazistas, selando a sorte da mulher de Luís Carlos Prestes, que só poderia ser, como de fato foi, o extermínio em campo de concentração. Tanto crédito para a índole pacífica do povo brasileiro...

As ditaduras dos anos 1960 e 1970 predominaram não só no Brasil mas em todo o Cone Sul, onde vigorou a famigerada Operação Condor, pela qual as polícias secretas dos países dessa área geográfica formaram um convênio de informações e serviços mútuos, sendo responsáveis por atentados, assassinatos e desaparecimentos. Roberto Mader em Operação Condor (Brasil, 2007, direção de Roberto Mader) vai desmontando peça por peça a máquina da repressão e revela suas monstruosidades.

Na Argentina, que permaneceu muito tempo sob o guante da direita, já saíram alguns filmes bem interessantes, como A História Oficial (Argentina, 1985, direção de Luis Puenzo – Oscar de melhor filme estrangeiro). Ali se examina o costume da ditadura, tantas vezes denunciado pelas Mães da Praça de Maio, de dar em adoção os filhos pequenos de “desaparecidos” a casais de sua confiança. Ou o mais recente Koblic (2016, direção de Sebastian Borensztein), em que a prática de lançar do avião os opositores, que também foi usual no Brasil, é examinada através dos olhos de um piloto da Marinha, vivido pelo grande ator Ricardo Darín.

La Noche de los Lápices (Argentina, 1986, direção de Héctor Olivera) passa-se em 1976, quando sete estudantes secundaristas foram submetidos a sequestro, tortura e assassinato por protestarem contra o cancelamento do bilhete de ônibus com desconto. Com a assessoria de um sobrevivente, o filme dá os nomes dos militares idealizadores e executores do plano.

Um Muro de Silêncio (Argentina, 1993, direção de Lita Stantic) narra o percurso de um “desaparecido” através de sua mulher e filha, e a dificuldade de lidar com o desaparecimento. Vanessa Redgrave, atriz conhecida por sua militância, faz a cineasta inglesa que vai a Buenos Aires filmar essa história e começa a querer entrevistar as pessoas na vida real para entender melhor.

Crônica de uma Fuga (Argentina, 2006, direção de Adrián Caetano) trata da prisão e tortura de um conhecido jogador de futebol durante a ditadura, e como escapa da cadeia para salvar sua vida.

O Chile contribuiu com vários filmes sobre sua trágica história. Entre eles, um documentário de Patricio Guzmán, Nostalgia da Luz (Chile, 2010), que filma, no deserto de Atacama, os cemitérios clandestinos de mortos e desaparecidos onde, trinta anos depois, familiares vão desenterrar ossos. É de uma beleza plástica extraordinária. Machuca (Chile, 2004, direção de Andrés Wood) conta a história de dois meninos de onze anos no tempo de Allende, um da burguesia e outro das zonas de pobreza, unidos numa experiência educacional, o modo como vivem esse tempo e a repressão subsequente.

Culminando, A Batalha do Chile (Chile, 1979, direção de Patricio Guzmán) documenta minuciosamente como testemunha de vista o que foi o projeto democrático e inovador do governo Allende. E depois registra como a direita tomou o poder em 1973, em meio a um banho de sangue, passando a desmanchar meticulosamente o projeto. Filmado ao longo de muitos anos, com produção de Chris Marker (francês que foi o maior documentarista político que já houve e que filmou todas as revoluções do século 20), foi terminado em 1979. Consta de três filmes: A Insurreição da Burguesia, O Golpe Militar, O Poder Popular, num total perto de seis horas. É uma obra-prima e certamente o mais importante filme já feito sobre as ditaduras da América Latina. Lembra, em sua ambição, China, também com sies horas, documentário do grande diretor italiano Michelangelo Antonioni, certamente único por sua relevância histórica, filmado durante a Revolução Cultural e monumento a uma China hoje desaparecida.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate