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Entre a ficção distópica e os fatos, o cinema retrata as consequências do pensamento da direita na sociedade

A preocupação do cinema com os horrores da direita não é de hoje. Certamente todos concordarão que o filme de Ingmar Bergman O Ovo da Serpente (Alemanha, Estados Unidos, 1977), diretamente endereçado às condições que levam ao nazismo, é um dos mais importantes.

Há também os distópicos, que, sem necessidade de mobilizar seres sobrenaturais, falam de um mundo futuro dominado pela direita. O mais famoso talvez seja 1984 (Inglaterra, 1984, direção de Michael Radford), baseado no ainda mais famoso livro de George Orwell, que recompõe um universo totalitário. Fica dentro dessa esfera Fahrenheit 451 (Inglaterra, 1966, direção de François Truffaut), em que nem mesmo os livros – janela de liberdade – têm permissão para subsistir: o título refere-se à temperatura a qual um livro é incinerado. Baseado no romance de Ray Bradbury, que já é uma ode à leitura.

Costa-Gavras é um realizador de que não podemos reclamar, pois sempre esteve na linha de frente na denúncia das ditaduras. A começar pelo filme que o alçou à fama, Z (França/Argélia, 1969), em que acusava o regime militar então em vigência na Grécia de um atentado nunca esclarecido em que tombou um líder político progressista. Sempre procurando ventilar episódios reais, como em Z, mais tarde assestaria suas baterias sobre as ditaduras militares da América Latina.

Estado de Sítio (França, Itália e Alemanha, 1972) vai cuidar do sequestro e justiçamento, pelos tupamaros na Argentina, de Dan Mitrione, militar americano enviado pela CIA para dar aos agentes da repressão treinamento em interrogatório sob tortura, sequestro, assassinato, “desaparecimento” e outras amabilidades, o que fez por todo o Cone Sul, inclusive em São Paulo. Foi esse especialista que implantou todo o sistema que se desenvolveria e proliferaria nesses países até desembocar na Operação Condor, na Oban (Operação Bandeirantes) e no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna).

Em Missing (Estados Unidos, 1982), Costa-Gavras amplia ainda mais o alcance ao focalizar o desaparecimento de um jovem jornalista norte-americano efetuado pelos órgãos de repressão do governo de Pinochet, no Chile. Os pais vêm procurá-lo pessoalmente, mas deparam com portas fechadas. Vão aos poucos descobrindo a cumplicidade do governo dos EUA com a ditadura e como dão cobertura aos crimes, mesmo que contra seus cidadãos. Acabam por se inteirar de que seu filho, quando do golpe contra Allende, tinha sido assassinado no Estádio Nacional, que foi a grande prisão no primeiro momento do golpe e onde se faziam fuzilamentos sumários às centenas, senão aos milhares.

Este filme, por envolver norte-americanos, fez muito mais celeuma que os dois anteriores de Costa-Gavras. Foi premiadíssimo, e embora indicado ao Oscar não ganhou o prêmio – mas foi melhor filme no festival de Cannes, e Jack Lemon, melhor ator. Atores no auge da popularidade, como Jack Lemon neste e Yves Montand nos dois outros, contribuíram para a divulgação desses episódios. Pode-se imaginar o vulto dos serviços que Costa-Gavras prestou à resistência, divulgando a causa através de filmes que foram vistos no mundo todo.

E há também os balanços posteriores, em que foi notória a iniciativa da África do Sul criando a Comissão da Verdade, bom exemplo que depois foi seguido em muitos outros países ainda no rescaldo de ditaduras, como o Brasil. E é da África do Sul, que dá os primeiros passos em cinema, em parceria com outros países de cinema mais desenvolvido, que vêm dois relevantes filmes sobre os trabalhos da comissão. Um é Em minha Terra (África do Sul/Irlanda/Reino Unido, 2003, direção de John Boorman), com Juliette Binoche. O outro é Sombras do Passado (Reino Unido/África do Sul, 2004, direção de Tom Hooper), com Hilary Swank.

De lá vem também o documentário Born Free – Filhos da Revolução (África do Sul, 2016, direção de Bernardo Rebello). Para entender as consequências perduráveis de um regime de direita, o filme aproveita a comemoração dos 20 anos do fim do apartheid e da eleição de Nelson Mandela. Examina os “born free”, como se designa quem nasceu depois do apartheid, às vesperas da eleição de 2014. Cobre três gerações (avós, pais e filhos) de duas famílias e suas reações. Alguns deles, e mesmo um velho, não querem votar. Outros expõem o argumento de que se deve votar no partido, o Congresso Nacional Africano, que derrubou o apartheid depois de décadas de luta e tremendos sacrifícios, e não no indivíduo (o famigerado Zuma, então presidente e candidato à reeleição). Fala-se da mansão que construiu com dinheiro público em sua província de KwaZulu-Natal (veem-se fotos), com prédios para suas quatro esposas e as famílias delas – e assim por diante.

Um dos mais terríveis filmes sobre a direita é O Ato de Matar (The Act of Killing), produção dinamarquesa/inglesa/norueguesa de 2014 que já ganhou o prêmio inglês Bafta e se candidatou, mas não ganhou, ao Oscar de melhor documentário. O diretor é Joshua Oppenheimer, que teve uma ideia brilhante: pedir aos perpetradores da tremenda repressão à esquerda na Indonésia – quando meio século atrás assassinou-se um milhão de pessoas – que reencenem suas proezas, ou seja, tortura e assassínios sádicos. E eles, que nunca foram responsabilizados e são considerados heróis nacionais, alegremente concordam. Sem fazer alarde ou demagogia, o filme transporta o espectador para o meio do horror.

É do Japão que vem Escola do Riso, excelente filme de 2004, em que, durante a guerra, se defrontam um autor teatral e um censor, e a dialética entre liberdade de expressão do artista e interesses do Estado que se desenrola entre ambos. Goro Inagaki dirige e protagoniza.

E do México vem O Violino (2005, direção de Francisco Vargas Quevedo), lindíssimo filme em preto e branco. O conflito impera entre a guerrilha e o exército, apresentando-se os camponeses rebeldes a enfrentar uma repressão esmagadora. Os embates visam recuperar um estoque de armas que a guerrilha escondeu. Vemos avô, pai e neto na resistência: o protagonista – o avô –, o violinista maneta, é inesquecível. Discreto, reservado, é um filme de dignidades, silêncios e esperas.

Mais brasileiros

Em artigo para Teoria e Debate, certa vez o cineasta Toni Venturi, diretor ele mesmo do excelente Cabra-cega (2005), forneceu uma lista dos filmes brasileiros que abordam, de uma maneira ou de outra, a ditadura, sua barbárie e suas consequências. São eles:

Da década de 1980, estes três: Pra Frente, Brasil (direção de Roberto Faria, 1982); O Bom Burguês (direção de Osvaldo Caldeira, 1982) e Que Bom te Ver Viva (direção de Lúcia Murat, 1988). E mais três da década de 1990: Lamarca (direção de Sérgio Resende, 1994); O que É isso, Companheiro? (direção de Bruno Barreto, 1997) e Ação entre Amigos (direção de Beto Brant, 1998).

Já nos anos 2000 surgem: Barra 68 (direção de Vladimir Carvalho, 2001), Quase Dois Irmãos (direção de Lucia Murat, 2005); Vlado (direção de João Batista de Andrade, 2006); Conspiração do Silêncio – Araguaia (direção de Ronaldo Duque, 2006); Sonhos e Desejos (direção de Marcelo Santiago, 2006); Zuzu Angel (direção de Sérgio Resende, 2006); O Ano em que meus Pais Saíram de Férias (direção de Cao Hamburger, 2006); Caparaó (direção de Flávio Frederico, 2006); Batismo de Sangue (direção de Helvécio Ratton, 2006); e Hércules 56 (direção de Silvio Da-Rin, 2006). Contribuição original é a de O Dia que Durou 21 Anos (direção de Camilo Tavares, 2012), por focalizar a participação dos Estados Unidos e especialmente da CIA no golpe de 1964. Lembramos aqui esses filmes, inclusive aqueles que já foram mencionados na primeira parte desta Cinemateca (“Direita volver!” I).

E sem esquecer alguns dos que surgiram sobre Marighella, entre eles o de Sílvio Tendler (Marighella – O Retrato Falado do Guerrilheiro, 2001), o de Isa Grispum (Marighella, 2012) e o mais importante de todos: o curta do maior documentarista da História, o francês Chris Marker (Falamos do Brasil: Carlos Marighella, 1970), que um ano antes já fizera outro curta sobre a tortura no Brasil. Certamente, dado o cunho excepcional do protagonista, outros ainda virão. Anuncia-se no momento mais um, e de ficção, com direção do ator Wagner Moura.

Para concluir num patamar altíssimo: Cabra Marcado pra Morrer (1964-1984), de Eduardo Coutinho. Um filme que mostra em sua própria estrutura – interrompida pela repressão e só retomada após a redemocratização – o que são os efeitos da ditadura. Ao planejar e começar a realizar um filme sobre um líder das Ligas Camponesas na Paraíba, João Pedro Teixeira, então recentemente assassinado, não se previu que o golpe de 1964 paralisaria as filmagens. Os materiais foram escondidos e os realizadores sumiram. Vinte anos depois voltam a entrevistar a viúva Elizabeth Teixeira, que vivera todo esse tempo na clandestinidade, com seus muitos filhos espalhados pelo país, havendo até um em Cuba estudando Medicina. O filme é extraordinário. Foi iniciativa do CPC da UNE e serve de padrão para que se entenda como foi relevante a militância dos estudantes nessa fase de nossa História, seus propósitos e sua contribuição.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate