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A batalha político-cultural passa pela compreensão e intervenção decisiva no mundo midiático

Sabido e consabido: golpes não nascem assim de uma hora para outra. São preparados, contam com muitos atores. O golpe militar de 1964 foi assim. Era necessário do ponto de vista de classes dominantes incapazes de conviver com a democracia, com reformas próprias de um regime democrático, como pretendia o presidente João Goulart.

Contou com a ajuda decisiva dos Estados Unidos. De setores poderosos da burguesia internacional instalada no país e de uma mal denominada burguesia nacional, acovardada e golpista. E com a intervenção política, isso mesmo, da mídia brasileira, aqui compreendida como as emissoras de rádio, as tevês existentes, os grande jornais, toda ela envolvida diretamente na preparação e na eclosão do golpe militar.

Esse texto foi provocado pela decisão da Fundação Perseu Abramo de fazer uma discussão sobre o apoio dos meios de comunicação ao regime militar, a acontecer no dia 10 de abril de 2024, em Salvador, com as participações de Luiz Dulci, Matilde Ribeiro, Marcelino Galo, minha, e mediação de Elen Coutinho.

Gramsci, e isso já conta um século, dizia serem os meios de comunicação um autêntico partido político. A mídia brasileira, então, salvo o jornal Última Hora, era um partido político de direita, totalmente envolvido com a articulação do golpe. Tinha um projeto político para o país. Não admitia as corajosas reformas propostas por Goulart, todas elas, insista-se, muito próprias do capitalismo, embora numa versão, chamemos assim, social-democrata.

As classes dominantes brasileiras, num enlace com as multinacionais, não admitiam, nunca admitiram um governo reformista. Até hoje agem assim, e a tentativa de golpe de 8 de janeiro é uma prova disso: continuam sem aceitar Lula, mesmo ele sendo levado a fazer um governo mais moderado, diferente dos anteriores, parte da moderação dessa segunda onda progressista da América Latina, como diria Álvaro Garcia Linera.

Mídia brasileira: um partido político

Dizia eu, em livro sobre a imprensa brasileira, publicado em 2015, e em vários outros textos, ser necessário dar adeus às ilusões: a mídia brasileira não se transformará por dentro. Seguirá como partido político, com posições e projeto para o Brasil. De direita, com visão de mundo conservador. Segue assim.

Completava, e insisti tantas vezes nisso: ou se constroem outras vozes, outros polos, ou estaremos submetidos ao discurso único, com uma visão do mundo da direita e agora muito fortemente da extrema-direita. E as novas vozes se tornam ainda mais necessárias em tempos de tecnologias da informação, área de hegemonia até agora da extrema-direita.

Dizer isso, a mídia constitui-se em partido político, pode parecer panfletário. E não é. Especialmente se falamos do golpe de 1964. Basta botar os olhos no livro de Aloysio Castelo de Carvalho, de 2010, sobre a chamada Rede da Democracia. Com tal nome, e hoje podemos dizer da ironia de tal denominação, se articulou o partido político a que me refiro: importantes meios de comunicação cerraram fileiras com as forças da direita e da extrema-direita dispostas a derrubar o presidente Jango, se constituíram numa poderosa força política.

Idealizada por João Calmon, do Partido Social Democrático (PSD), e vice-presidente dos Diários Associados, criada em outubro de 1963, a poucos meses do golpe, tal rede era um programa radiofônico comandado pelas rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar praticamente todos os dias. Ganhava repercussão através de outras centenas de emissoras afiliadas. E os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram em seguida publicados em O Globo, Jornal do Brasil e em O Jornal.

Parte fundamental do golpe, essa rede fazia a necessária luta político-cultural, ideológica, destinada a convencer a população da necessidade da intervenção das Forças Armadas para conter o comunismo, como se o governo Goulart tivesse alguma inspiração de tal natureza, e não, como de fato, uma orientação essencialmente democrática. Os objetivos desse partido, e vou insistir na formulação, ficaram nítidos no dia da inauguração dessa chamada Rede da Democracia, em 25 de outubro de 1963, a coisa de cinco meses do golpe.

Os discursos giraram em torno do combate ao comunismo, esse espectro de que a direita e a extrema-direita, quando conveniente lançam mão, não importando a veracidade ou não dos argumentos. O comunismo aparecia, na formulação dos oradores, como ideologia totalitária voltada à desestruturação da democracia e de todos os direitos individuais, principalmente aqueles relacionados à liberdade e à sacrossanta propriedade.

Nascimento Brito, do Jornal do Brasil, disse estar havendo um esforço das forças do governo Goulart no sentido de obter consentimento popular para fazerem do Brasil uma experiência semelhante ao do nazismo, do fascismo e do comunismo, pouco importando viesse depois uma ditadura a desenvolver métodos próprios do nazifascismo.

Roberto Marinho, a se constituir depois no mais poderoso homem de comunicação do Brasil por muito tempo e um apoiador essencial da ditadura e de todos os crimes dela, disse serem os brasileiros, naquela quadra política, vítimas de uma espécie de campanha, de uma deformação intencional por parte de uma minoria de demagogos e comunistas, sempre eles, empenhados em envenenar as relações do Brasil com os países do mundo ocidental.

João Calmon, representando Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados, e então um dos mais poderosos homens da comunicação no país, ao falar, dizia ver no rádio o instrumento político contra o comunismo, olha ele aí de novo, de modo a ganhar, e ele não escondia o objetivo, de modo a ganhar a batalha da propaganda, para ele a mais importante batalha da Guerra Fria. Quem pretender entender melhor essa Rede da Democracia deve ler o livro de Carvalho. Essencial. Até porque ele não é responsável por minhas interpretações.

A tragédia do Correio da Manhã

À Rede da Democracia devem ser acrescentadas tantas outras publicações. Embora formalmente possam não estar organicamente ligadas a ela, até pelas disputas entre os meios de comunicação, eram vinculadas ideológica e politicamente à tal rede. Podemos citar O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, além do Correio da Manhã.

Do primeiro, não é preciso falar muito. O Estadão nunca escondeu as convicções autoritárias. Defendeu o golpe com ardor. Participou das articulações para chegar a ele.

A Folha de S. Paulo encontra a melhor tradução no livro de Beatriz Kushnir, “Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”, onde é revelada a cumplicidade ativa dela com a ditadura.

O Correio da Manhã talvez seja a personificação mais acabada, e trágica, dos dilemas burgueses: em momentos de crise, acreditam serem as ditaduras uma solução momentânea. Acreditam mais: logo depois, retomam o controle e então há a volta à democracia, naturalmente mais domesticada. Marx dizia mais ou menos isso sobre esse dilema: a burguesia chama a espada, e depois a espada se volta contra ela. Ele fala sobre isso n”O 18 de Brumário” e em “Cartas a Kugelmann”.

Sem tirar nem pôr, foi o que aconteceu com o Correio da Manhã, nascido em 1901, opositor de Getúlio desde sempre, de Juscelino, de Goulart, decisivo para o desencadeamento do golpe. Mais do que nunca, em 1964, o jornal chamou a espada. Só lembrar os títulos dos históricos editoriais do dia 31 de março daquele ano: “Basta!”

E o de 1º de abril do mesmo ano: “Fora!”

Tais títulos sintetizam a natureza partidária da imprensa da época: impositiva, prescritiva, senhora da razão, dona do discurso, como se ela fosse dona da verdade, não importando estivesse participando da tentativa de um golpe de consequências trágicas para o país.

O Correio da Manhã era então o mais influente diário brasileiro, e com tal atitude fornecia uma senha aos golpistas. O objetivo: consumar o golpe. O clima estava criado, as chamadas condições subjetivas estavam dadas – era esse o recado dado pelos meios de comunicação aos golpistas, de modo especial pelo Correio da Manhã.

Fazia-se uma exortação prévia e uma comemoração. Ao partido-mídia, pouco importava as consequências do golpe, o que a espada viria a fazer, o sangue correndo nas catacumbas, as torturas, os desaparecimentos, as milhares de prisões, o terror estatal, os 21 anos a atingir inclusive os jornais e revistas, os mesmos a clamar pela espada.

O Correio da Manhã logo se apercebeu do significado de uma ditadura. Iniciou a luta contra as atrocidades da espada. E ao levantar-se contra o regime militar, muito cedo desapareceria, asfixiado, perseguido de todos os modos, sem ter a chance de ver a volta da democracia, em 1985. Em momento nenhum, a mídia brasileira foi capaz de fazer uma revisão, uma autocrítica de tal atitude política. Talvez chegue a pensar ter apenas “feito jornalismo” para apascentar a alma, purgar os pecados, se em algum momento pense em erros, e erros gravíssimos, trágicos.

O padrão complacente-engajado da mídia

Ditadura é ditadura, e enquanto dura, as consequências cobram alto preço à nação. A nascida em 1964 teve fases distintas. A primeira fase pretendeu combinar ditadura e legalidade, com a Constituição de 1967. Entre 1964 e 1968, o movimento popular, especialmente o estudantil e o de camadas médias, volta a ganhar vigor. Aqui também despontam publicações dinâmicas, de uma forma ou de outra de combate à ditadura, como o próprio Correio da Manhã, Zero Hora, Veja, Realidade, Folha da Tarde e Última Hora. Os jornalões seguiam apoiando a ditadura.

Uma segunda fase se inicia com o AI-5. Desse momento em diante e até o final dos anos 1970 predomina o padrão complacente por parte da mídia brasileira – a expressão é de Bernardo Kucinski, e dela gosto muito. Prefiro, no entanto, chamar de complacente-engajado, no sentido de a mídia hegemônica, na esmagadora maioria dos casos, estar engajada no projeto da ditadura, ter feito nítida opção pela existência daquele regime de força.

Não se queira, por injusto, todos os jornalistas envolvidos no apoio à ditadura. Os profissionais eram levados a seguir uma linha editorial de apoio ao regime, e não tinham escapatória, como diria Beatriz Kushnir. Quando podiam, os mais conscientes procuravam frestas para noticiar coisas em princípio proibidas.

Predominou, isso sim, a autocensura.

A censura, embora existente, não foi o dominante. A imprensa, a partir da orientação vinda de cima, dos grandes empresários, dos controladores dos meios, como dirá Jânio de Freitas, não obstante uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura.

Claro, houve censura. Hélio Fernandes, à frente da Tribuna de Imprensa, enfrentou dez anos de censura prévia, e normalmente, não obstante seja o mais atingido, não é o mais lembrado. De agosto de 1972 a janeiro de 1975, as vítimas foram O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde. Veja foi censurada do início da década de 1970 até 1976. E nem se fale dos jornais alternativos, os mais visados. Estabelecida a censura prévia, e sob influência da ditadura, os patrões cuidam de fazer expurgos nas redações.

Mino Carta se afasta de Veja, por não aceitar a orientação patronal pretendida. Cláudio Abramo é afastado da Folha de S. Paulo. Alberto Dines, do Jornal do Brasil. Os patrões promoveram tal expurgo por incomodados com aquelas lideranças jornalísticas insubmissas, incapazes de aceitar uma linha de absoluta subordinação e de fechar os olhos ao arbítrio e às violações dos direitos humanos.

A crise do modelo complacente-engajado ganha alguma intensidade com os assassinatos, na tortura, do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, entre 1975 e 1976, e explode no final dos anos 1970, quando a mídia percebe uma efetiva mudança no quadro político.

A ditadura ainda demoraria para acabar, mas a linha dura do regime fora derrotada, o movimento de resistência crescia, e assim a mídia hegemônica experimenta mudanças. Só lembrar a Folha de S. Paulo, um fiel aliado da ditadura, passando a partir daí a copiar temas e fórmulas da imprensa alternativa. Houve, então, uma arejamento.

Encerro, afirmando: em 1985, quando a ditadura é finalmente derrotada, numa transição por cima, e apesar disso muito importante, terminava também um ciclo da imprensa brasileira, nada glorioso, onde predominou o padrão complacente-engajado, não obstante o arejamento na fase final da ditadura, um padrão de cumplicidade e colaboracionismo com o regime militar.

Em seguida, a imprensa mergulhará, com ênfase, na defesa do Estado mínimo, para logo depois embarcar na louvação e defesa do neoliberalismo, mas aí já é outra história. Os meios de comunicação, ontem e hoje, não obstante a situação atual, com as tecnologias da informação dominadas por oligopólios capitalistas apresentarem novos desafios, são parte da dominação de classe no Brasil e no mundo.

Essencial não descuidar disso. A batalha político-cultural passa pela compreensão e intervenção decisiva no mundo midiático. A luta de classes passa por aí. A extrema-direita, no Brasil e no mundo, tem compreendido isso. A esquerda, ainda de modo insuficiente. Hora de acordar.

Referências

CARVALHO, Aloysio Castelo de. A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e o Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-1964) / Aloysio Castelo de Carvalho – Niterói: Editora da UFF, Editora NitPress, 2010, 233 p.

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários nos Tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda, 1991, 408 p.

KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda : Jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, 405 p.

JOSÉ, Emiliano. Intervenção da imprensa na política brasileira (1954-2014) / Emiliano José. – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015. 183 p.

LINERA, Álvaro García. Linera: moderação está fazendo mal à esquerda. Outras Palavras, 24/11/2023.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros