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Assustador: mantida a atual velocidade de vacinação, o Brasil levará cerca de quatro anos e meio até sua população receber as duas doses

A vacinação contra a Covid gira em torno dos 20% e 10%, primeira e segunda dose, a significar nossa distância de uma cobertura segura para o enfrentamento da doença. Sabemos: enquanto ao menos 70% não estiverem vacinados, será essencial manter as regras de segurança, o distanciamento social, evitar aglomerações a todo custo. Os números diários do país indicam a gravidade da pandemia. Já ultrapassamos os 450 mil mortos, a passos acelerados para chegar a 500 mil pessoas vitimadas – um genocídio decorrente no caso brasileiro da política do governo federal, fundado no negacionismo, numa espécie de necropolítica, estímulo à morte evidenciado pelas passeatas e comícios promovidos pelo próprio presidente da República, numa zombaria inaceitável aos milhares de parentes dos mortos levados ao túmulo pela peste.

Manter o distanciamento social dependeria, para ser verdadeiramente amplo, de um governo consciente de suas responsabilidades com a saúde e o bem-estar de seu povo, do qual estamos distantes atualmente. Tais responsabilidades incluiriam o fortalecimento do sistema de saúde público, o SUS, manietado pela PEC do Teto de Gastos, e apesar disso, heroico no enfrentamento da doença. E a compra de vacinas desde o primeiro momento, no início do ano passado, quando a pandemia se instalou, havia a possibilidade de adquiri-las. Nada disso aconteceu, e a CPI da Covid, de forma irrepreensível, está evidenciando esses crimes de lesa-humanidade. Duro dizer: a vacina está chegando a conta-gotas em todo o país. Duro assistir tantas categorias querendo ser incluídas nas prioridades.

Lembro um ditado popular: em casa onde falta pão todo mundo grita e ninguém tem razão. Ou todos têm. Falta vacina. E os vácuos, os prazos dilatados entre uma dose e outra, vão tornando a pandemia mais grave – é alerta feito por vários cientistas. A sério mesmo, seria bom termos um governo capaz de ouvir o nosso grande Miguel Nicolelis: ele vem batendo na tecla – ou se faz um lockdown nacional de mais de 20 dias, rigoroso, ou então seguiremos numa impressionante e macabra série de mortes. A CPI, em curto espaço de tempo, há de apontar os responsáveis por esse quadro e a Justiça há de puni-los, espera-se.

Enquanto isso, enquanto a vacina não vem, enquanto ela existe a conta-gotas, tudo dependerá do esforço para manter o isolamento social, evitar aglomerações e garantir a renda mínima para assegurar isso à maioria da população. Todo o trabalho das oposições dever estar baseado em mobilizações virtuais, pelas redes sociais, e está provado ser isso absolutamente possível. Lembro aquela recentemente puxada pela Universidade Federal da Bahia, liderada pelo reitor João Carlos Salles, a reunir mais de 5 mil pessoas e provocar o entusiasmo, assinaturas de apoio de personalidades nacionais e internacionais da educação, da cultura, da política, da ciência, num ato cuja duração ultrapassou três horas.

Creio, a par disso tudo, ser necessário discutir o problema das vacinas de um ponto de vista estratégico, estrutural. Considerar que o mundo está sendo devastado pela pandemia porque o capitalismo fez da saúde mercadoria e desprezou, por obviedade, os sistemas públicos de saúde, e nisso estão incluídos os países mais desenvolvidos do planeta. Sabia-se da existência de pandemias, não eram novidades, e não houve preparação do sistema de saúde para a eclosão da Covid. O capital tem uma lógica. A saúde pública, outra.

Está em curso uma guerra geoestratégica vacinal, como a denominou Boaventura de Souza Santos em recente artigo, a dar prioridade aos países mais ricos, e a deixar de lado as nações periféricas, agravando o genocídio mundial em andamento, evidenciando, a par das desigualdades internas de cada país, a desigualdade entre países pobres e ricos. Tudo porque vacina, um produto indispensável à saúde, destinado ao bem comum, tornou-se mercadoria nas mãos da indústria farmacêutica.

Com a patente nas mãos, essa indústria, no meio de uma das mais graves crises sanitárias da história, ganha bilhões de dólares. O professor Osvaldo Coggiola informa em recente artigo: as vacinas respondem pelo quinto maior faturamento de produtos da área farmacêutica, e com a pandemia, devem elevar-se à condição de segundo nicho mais lucrativo, atrás apenas dos produtos oncológicos. Alguns hão de dizer: é o capital, estúpido. É, mas devemos nos render a ele, mesmo frente a esse quadro dantesco? Não.

Não sei até onde vai o peso do presidente dos EUA, Joe Biden, ou o do porta-voz do Ministério do Exterior chinês, Zhao Lijian. Os dois governos se aliaram a outras nações, como a Índia e a África do Sul, na defesa da quebra de patentes relativas às vacinas voltadas ao combate do Covid-19. Seria medida justa, adequada ao momento vivido pela humanidade, mas o capital não é dado a considerações de natureza humanitária.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Ghebreyesus, fez, nos últimos dias, duras críticas à concentração de doses nas mãos de poucas economias e pediu mudança de estratégia. A distribuição das vacinas, como está sendo feita, é escandalosa, e perpetua a pandemia, como ele diz. Informa: apenas dez países concentram 75% de todas as vacinas administradas. Abandonou a diplomacia e disse: “um pequeno grupo de países controla o destino do mundo”. Isso está em matéria de Jamil Chade, no UOL.

Claro, a um diretor de agência como ele não caberia fazer uma crítica ao capitalismo e suas cláusulas pétreas, mas ao fazer tal denúncia não deixa de revelar a gravidade do quadro provocado pela mercantilização da saúde no mundo. Pra se ter ideia da tragédia, a Organização Mundial da Saúde lançou, na semana iniciada dia 24 de maio, a meta de ter 10% da população mundial vacinada até setembro. Até dezembro, pretende se chegue aos 30%. Tudo muito modesto.

Parar a mortandade depende da vacina – é opinião de Tedros Ghebreyesus.  A OMS está buscando um acordo com o FMI – tenho pouca esperança – de modo a que, até meados de 2022, 60% da população estejam imunizados. Isso, no entanto, como parece óbvio só será possível com mudanças profundas na distribuição das vacinas e com a quebra de patentes, a tornar a produção mais global, mais rápida e mais barata.

O diretor-geral da OMS salientou o fato incontornável: o mundo, em cinco meses, registrou mais casos em 2021 do que todo o ano de 2020. No ritmo atual, as mortes em 2021 vão superar os óbitos de 2020 em apenas três semanas. É um quadro trágico, insista-se. Para a indústria farmacêutica, uma extraordinária fonte de lucros. E está certo o diretor da OMS: a pandemia só estará sob controle quando todos os países estiverem imunizados. Enquanto isso não ocorre, vai ser um tapa-buraco permanente, especialmente para os países mais pobres, aos quais a vacina chega a conta-gotas, mas não apenas para eles. O destino é comum. A tragédia é comum.

No caso brasileiro, assustador. O professor Coggiola, em seu artigo, afirma: mantida a atual velocidade de vacinação, o Brasil levará cerca de quatro anos e meio, 1729 dias, até a população brasileira receber as duas doses, e já vamos nos aproximando do momento da terceira dose.

E isso num Brasil recordista de letalidade da Covid no mundo, onde o risco de morte pela doença é mil vezes o do Vietnã, 303 vezes o da China, 1,7 vezes o da Itália, 1,4 vezes o dos EUA. E cuja administração da pandemia o fez saltar do nono para o primeiro lugar na lista de mortos por milhões de habitantes de 2020 para 2021, evidenciando o agravamento da pandemia neste ano. Esses últimos dados são do Boletim Conjuntura 41, enviando por e-mail, organizado por José Sérgio Gabrielli de Azevedo.

Hoje, dia 26 de maio de 2021, o país acordou com UTIs lotadas, índice de contaminação crescendo assustadoramente, cepa indiana ameaçando, governos obrigados a manter os tímidos fechamentos de atividades econômicas, tudo a indicar a chegada da chamada terceira onda, na minha opinião, a continuidade de uma pandemia sem controle, assustadora, no caso brasileiro.

Esperança é a possibilidade real de elegermos Lula em 2022, e aí dar velocidade à compra de vacinas e imunização do povo. Aí, em 2023, teremos governo, e governo preocupado com a sorte do povo, com a vida.  Até lá, firmeza, serenidade, coragem e determinação para manter o distanciamento social, lutar contra a política genocida do governo federal, a favor da renda básica emergencial para a população mais pobre, defesa intransigente da vida, utilizar toda a potência das redes sociais para tanto, e combater duramente as aglomerações promovidas pelo atual presidente.

Referências

BOLETIM.Conjuntura nº 41. AZEVEDO, José Sérgio Gabrielli (Org.).

CHADE, Jamil. OMS: crise de vacina é “escândalo” e pequeno grupo controla destino mundial, UOL, 24/05/2021.

COGGIOLA, Osvaldo. "O jogo dos mercadores da morte". A Terra é Redonda, 18/04/2021.

SANTOS, Boaventura de Sousa. "A guerra geoestratégica vacinal". A Terra é Redonda, 11/04/2021.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros