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As condições de realização da prova foram altamente excludentes. Em razão disso, vimos a maior taxa de abstenção da história do Enem, 51,5%

No domingo 17 de janeiro de 2021, foi realizada a primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, envolvendo as áreas de linguagens, ciências humanas e redação – esta com o tema "o estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira". A segunda etapa ocorre uma semana depois, com questões sobre ciências da natureza e matemática.

A realização de uma prova nacional em um país das dimensões do Brasil não é uma operação simples. Embora tenha sido criado em 1998 para fins de avaliação do Ensino Médio, a primeira grande ampliação do Enem veio em 2004, quando passou a ser critério para as bolsas do Programa Universidade para Todos (ProUni).

A partir de 2009, com a criação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), tornou-se base para a admissão de estudantes em quase todas as universidades públicas e privadas brasileiras. De lá para cá, foram muitas as polêmicas envolvendo as provas, com destaque para aspectos socioeconômicos, históricos e políticos abordados nas questões, o formato não conteudista e mais interdisciplinar da prova, bem como a escolha dos temas da redação.

Em 2009, um problema de vazamento das provas pela gráfica provocou questionamentos sobre a logística de aplicação do Enem, mas o governo enfrentou a questão com seriedade e transparência, garantindo que nenhum estudante fosse prejudicado e mantendo, assim, a confiança da comunidade acadêmica em relação ao Enem.

Em 2019, no primeiro Enem da gestão Bolsonaro, a postura já foi outra. O então ministro da educação, Abraham Weintraub, tratou como "inconsistências" as falhas que prejudicaram mais de 6 mil candidatos. Em 2020 somaram-se problemas de ordem distinta. O ano foi atípico em todos os sentidos imagináveis – e não imagináveis. Como previsto, a realidade mostrou-se muito diferente do que havia dito Weintraub em abril: "o Enem é uma competição e ficou mais difícil pra todo mundo".

A interrupção das aulas presenciais logo no primeiro trimestre de 2020 impôs sérias restrições ao cumprimento do calendário acadêmico, acarretou dificuldades de concentração e foco para discentes, sobrecarga de trabalho para docentes, desafios didáticos para toda a comunidade escolar e agravou sobremaneira as desigualdades entre estudantes ricos e pobres. Segurança alimentar, acesso à internet e dispositivos de conexão, situação do ambiente domiciliar, condições de acompanhamento familiar e disponibilidade de tempo e materiais de apoio são alguns dos marcadores que permeiam as realidades desiguais dos estudantes brasileiros. Enquanto alguns precisaram trabalhar para ajudar na renda das famílias, outros seguiram acompanhando as aulas e tiveram reforço escolar com professores particulares.

O edital do Enem foi lançado em abril de 2020, quando a pandemia já estava instaurada no Brasil e no mundo. Desde então, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e outras entidades vinham lutando pelo adiamento do exame em mobilizações reiteradamente ignoradas pelo governo federal, conforme registra a linha do tempo das ações da UBES por um Enem justo e seguro.

Se é fato que o adiamento conquistado em novembro de 2020 se deu em função da luta dos estudantes, sua realização em janeiro de 2021 não atenuou nenhuma das questões que já estavam em debate.

O abismo que separa estudantes em termos de classe, raça, local de moradia (centros  e periferias urbanas e rurais) e a falta de diálogo com o governo evidenciaram que as condições de realização da prova foram de fato altamente excludentes. Em razão disso, vimos a maior taxa de abstenção da história do Enem, 51,5%, muito acima da maior taxa até então, de 37,7%, de 2009.

O caso do Amazonas é emblemático, mas muitas outras localidades do país passam por situações semelhantes. Outros treze estados vivem tendência de alta de casos da Covid-19. O governo prometeu protocolos de biossegurança para tentar dirimir os riscos de contaminação, considerando as aglomerações, o deslocamento até os locais de prova e a permanência em local fechado por 5 horas. Porém, foram muitas as falhas. A prova foi adiada em 58 municípios – 56 no Amazonas e 2 em Rondônia. Mais de 10 mil estudantes deixaram de comparecer por apresentar sintomas da Covid, dos quais 8.180 foram autorizados a realizar a prova em fevereiro, ao passo que 1.991 pedidos foram negados. Veremos quantos mais ficarão de fora da segunda etapa da prova, parte dos quais em razão de eventual contaminação na primeira etapa.

A alta abstenção foi também seletiva, afinal, quais as condições de comparecimento de estudantes pertencentes ao grupo de risco sanitário? Quais as implicações para os moradores de seus domicílios? Por isso vimos menos negras e negros, por isso vimos menos pessoas mais velhas no último dia 17. Enquanto esses não compareceram ou enfrentaram mil e uma dificuldades para estar presentes, barracas de apoio de cursinhos e escolas particulares foram montadas próximo a locais de prova. É evidente que, nessas condições, o Enem não vai criar oportunidades, ao contrário, reproduz e agrava as desigualdades educacionais no Brasil.

Sua realização foi mais um episódio de negação da pandemia. É notável que na semana em que a Anvisa valida a CoronaVac produzida pelo Instituto Butantan milhares de futuros cientistas e pesquisadores sejam tratados dessa forma. Suas vidas estão em risco. A ciência brasileira está em risco. O desenvolvimento nacional está em risco. Não dá mais.

 

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)