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Maior compositor de trilhas sonoras cinematográficas, Morricone se foi aos 91 anos, em 6 de julho de 2020, deixando um legado de quatrocentas músicas para cinema e TV

Esse que se foi aos 91 anos tem a seu crédito a bagatela – que deve ser recorde – de quinhentas composições, sendo quatrocentas para cinema e TV, as outras cem para concerto. Sim, porque era músico clássico, de formação em conservatório, e nunca deixou de compor música clássica. Atuou durante sete décadas, ganhou numerosíssimos prêmios, entre os quais muitos Discos de Ouro, cada um correspondendo a um milhão de discos vendidos. No total, foram 70 milhões de discos. Influenciou desde outros compositores de trilhas sonoras para cinema, rádio e TV, até bandas de rock e cantores pop. O maior violoncelista do mundo, Yo Yo Ma, gravou um CD inteiro chamado Ennio Morricone.

Os filmes para os quais contribuiu com sua arte são tão famosos, que basta citá-los: todo mundo que gosta de cinema os viu. Vamos recapitular os principais aqui.

Começando pelos da Itália, sua pátria, onde às vezes musicou não só um ou outro filme de algum grande diretor, mas toda a obra. Foram seus fregueses Vittorio Storaro e Giuseppe Tornatore, desde esse hino de amor à sétima arte que é Cinema Paradiso. E, sobretudo, graças ao alcance internacional que chamou a atenção para o compositor, Sergio Leone, inventor do spaghetti western, que renovou um gênero cinematográfico moribundo e o temperou com uma ácida pitada de crítica. Mas também musicou Elio Petri (Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita), Bertolucci, Mauro Bolognini, Pasolini, Liliana Cavani. Inesquecível é A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, que celebrou a guerra colonial em que os argelinos expulsaram os franceses imperialistas.

No âmbito internacional, vamos percorrer alguns filmes que, ou pela excelsa qualidade ou pelo sucesso massivo, se tornaram marcantes. Entre outros que o chamaram para participar, estiveram diretores americanos da primeira linha como Mike Nichols e Oliver Stone. Sem falar em Quentin Tarantino, fã ardoroso que lhe confiou uma sequência de seus filmes mais recentes, a exemplo de Bastardos Inglórios, Django Livre e Os Oito Odiados. E mais Brian De Palma, Barry Levinson, Terrence Malick, Roman Polanski. E às vezes alguns inesperados, como o francês A Gaiola das Loucas, de Edouard Molinaro: não só um, mas todos os três. Ou O Exorcista 2. Ou ainda Pedro Almodóvar, em Ata-me!

Para a TV, basta mencionar Os Simpsons e Os Sopranos, tão diferentes entre si.

Esnobado por Hollywood, esse que é provavelmente o maior compositor de trilhas sonoras do cinema, só ganharia o Oscar quase no fim da vida, aos 87 anos, em 2016, por Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino. Um pouco antes, em 2007, recebera o Oscar honorário pela carreira – raramente atribuído a um compositor. Ainda assim, Os Oito Odiados foi um de seus últimos trabalhos, ou seja, por pouco não morreria sem receber um Oscar. É claro que o vexame seria todo de Hollywood, e não dele.

Entre as unanimidades, está a música do filme de Sergio Leone The Good, the Bad and the Ugly (Três Homens em Conflito), à qual o júri de confrades da Variety deu o primeiro lugar e que entrou para o Grammy Hall of Fame em 2009. E outra trilha, a de A Missão, foi em 2005 considerada pelo American Film Institute (AFI) uma das 25 melhores de todos os tempos.

A Missão (Inglaterra, 1986), dirigido por Roland Joffé, ganhou a Palma de Ouro de direção no Festival de Cannes e muitos outros galardões em várias categorias e latitudes. O filme, que deveria ser obrigatório em nossas escolas, trata da bela obra dos jesuítas cuidando dos índios em Sete Povos de Missões, entre Rio Grande do Sul, Argentina e Paraguai.Tanto os portugueses quanto os espanhóis cobiçavam aquela concentração de mão-de-obra, e finalmente os aldeamentos foram arrasados. Os milhares de indígenas ali agrupados foram ou escravizados ou dizimados, e é o que mostra o filme. Jeremy Irons faz um padre jesuíta e Robert De Niro um nobre espanhol em penitência por ter cometido assassinato. Ambos lideram os índios e apresentam posições divergentes, entre o não-enfrentamento e a resistência armada.

A trilha sonora executada pela Filarmônica de Londres, fusão de música sacra barroca e cantos indígenas, é de uma beleza inefável. No filme, soa no dia a dia e soa enquanto eles são massacrados, arrebatando o espectador, dando a impressão de que está ouvindo os anjos. Não dá para entender como Morricone não ganhou o Oscar, o que só faria quase quarenta anos depois, como vimos – quando pode ser considerado o melhor e maior compositor de trilhas sonoras de toda a história do cinema, e A Missão sua obra-prima. Um de seus últimos trabalhos foi uma missa para o papa Francisco.

Falar de Morricone impõe uma palavra para celebrar seu antecessor, Nino Rota, que exerceu o mesmo papel na geração anterior. Fellini apreciou tanto seu talento que lhe confiou quase todos os seus filmes, a partir de Lo Sceico Bianco – na desastrada tradução brasileira, Abismo de Um Sonho. Foram dezenas de colaborações, a tal ponto que ouvir uma de suas melodias logo traz à memória a cena de algum filme desse cineasta. Sem falar naquela bandinha de circo desfilando ao som estridente de uma marchinha face ciosa, em comentário zombeteiro às vaidades humanas, que frequentou tantos desses filmes: o som é de Nino Rota. Confiaram-lhe trabalhos cineastas do porte de Visconti, Zefirelli, Mário Monicelli e Francis Ford Coppola, neste último caso por encomenda que veio dos Estados Unidos para duas partes da trilogia de O Poderoso Chefão. Mas não se pense que foi apenas pelo entrecho de italianos desterrados. Pois King Vidor o chamou a Hollywood para fazer a trilha de Guerra e Paz: mais russo, impossível. Era compositor de óperas, balés e música para orquestra sinfônica. Ganhou todos os prêmios possíveis a seu tempo (menos o Oscar, claro).

Resta lembrar que seu sucessor na geração seguinte, Ennio Morricone, esteve à sua altura e não desmereceu do ilustre antecessor.

Assistir e ouvir em casa

Cinema Paradiso – NOW, YOUTUBE

A Batalha de Argel – YOUTUBE

Bastardos Inglórios – NOW, TELECINEPLAY

Django Livre – NOW, GLOBOPLAY, GOOGLEPLAY, YOUTUBE

Os Oito Odiados – NOW, GOOGLEPLAY, PRIMEVIDEO, YOUTUBE

A Gaiola das Loucas – YOUTUBE

O Exorcista 2 – YOUTUBE

Ata-me! – YOUTUBE

The Good, the Bad and the Ugly (Três Homens em Conflito)NOW, TELECINEPLAY, YOUTUBE

A Missão – YOUTUBE

 

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate