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A perseguição contra o filme certamente anima ainda mais os brasileiros a assisti-lo. O obscurantismo nem sempre calcula os efeitos das investidas furiosas contra a liberdade

Deparei com Marighella tem é tempo. Momento mais triste, dia 5 de novembro de 1969, caminhando ali pelos finais da Avenida Paulista, quando paro numa banca de revistas. Creio fosse para um ponto na Vila Mariana. As manchetes provocam um frio no estômago. Noite anterior, ele havia sido morto covardemente por verdugos da ditadura, sob o comando de Sérgio Paranhos Fleury, naquele momento o mais terrível assassino daquele regime de terror e morte.

A gente, quem vivia na clandestinidade, e eu nos meus 23 anos vivia assim, quem sobrevivia em meio às nuvens escuras daquele tempo tão sombrio, morreu um pouco com ele. O mundo ficava mais triste sem a poesia dele e, sobretudo, a revolução perdia um de seus melhores quadros. Os terroristas cercavam a todos nós, e quando o mataram, parecia, e não era só aparência, uma caminhada triunfal da morte – e de alguma forma, será. Até o povo interrompê-la decorrido um bom número de anos.

Nós morreremos, desapareceremos, seremos torturados, iremos para as prisões. Queria, a ditadura queria, fôssemos esquecidos. Esmagar-nos e depois condenar-nos ao esquecimento. Ditaduras sempre raciocinam assim. E sempre dão com os burros n’água. Um Marighella, por seu papel na história, por sua dedicação às melhores causas do povo brasileiro por quase quatro décadas, por suas convicções comunistas, militância demorada no Partido Comunista Brasileiro (PCB), depois, a partir de 1968, comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN), jamais seria esquecido. Causa vã – a da ditadura.

Deparei com ele novamente nos anos 1990, por movimentações do filho Carlinhos, a carregar com tanta honra o mesmo nome do pai, e a militar durante muito tempo no velho PCB, e depois por conta dessa militância, ser preso, torturado e condenado, como consequência da chamada Operação Radar, cujo objetivo era dizimar o Partidão. Sugestão dele e de Clara Charf, companheira do velho revolucionário, escrevi o livro Carlos Marighella: O inimigo número um da ditadura militar – emocionante tarefa, cumprida em quatro meses. Vou reencontrá-lo na leitura do indispensável Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, abrangente biografia do comunista. Livro de aprender e emocionar.

E aconteceu Havana. Encontrei-me com Marighella no cinema. Aquele encontro me fez voltar no tempo, e lembrar do tiro no peito, resistência à prisão dentro de cinema no Rio de Janeiro, dia 9 de maio de 1964, levado, sangue aos borbotões, para as masmorras. Havana, final de 2019. Éramos Carla, minha companheira, e a jornalista Eleonora Ramos, e o filme Marighella sendo exibido no Cine Yara, sala situada em esquina muito movimentada da capital cubana – todo final de ano é local privilegiado para a exibição dos filmes do Festival Internacional do Novo Cinema Latino-americano. Ao lado do Habana Libre Hotel, e em frente ao Copellia Ice Cream Palace – pense num povo pra gostar de sorvete: é o cubano. Filas e mais filas. E pense num povo pra gostar de cinema: é o cubano. O festival em andamento, e a gente enfrentando filas e mais filas, assistimos a muitos filmes.

Privilégio de conversar com Wagner Moura, o diretor, no Hotel Nacional, à tarde, antes da exibição, facilitada por contato anterior da neta do velho Marighella, Maria, também cheia de honra por carregar o nome do comunista, amiga de Moura, atriz do filme, e pelo fato dele ter sido aluno da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde fui professor. Encontro caloroso, e mais caloroso, ainda, à noite, num Yara lotado. Do sabido, 1650 lugares, e os cubanos entoando a plenos pulmões um para nós estimulante “Fora Bolsonaro”.

O filme, não é segredo pra ninguém, é baseado no livro de Mário Magalhães. Exibi-lo no Brasil, uma saga. O atual governo fez de um tudo para evitar fosse conhecido pelos brasileiros. Quase três anos de clandestinidade em solo pátrio. Censura. Marighella continua presente, a assustar ditaduras e admiradores de regimes autoritários, a deixar a extrema-direita à beira de um ataque de nervos, como deixou a brasileira. Estreia no dia 4 de novembro em coisa de trezentas salas em todo o país – inegavelmente, uma vitória da democracia, uma demonstração da força da cultura, da disposição de luta de Wagner Moura, celebrado ator, agora também diretor.

A perseguição contra o filme certamente anima ainda mais os brasileiros a assisti-lo. O obscurantismo nem sempre calcula os efeitos das investidas furiosas contra a liberdade. Tenho convicção de ver salas cheias Brasil afora. Filme é sempre um recorte. Se quiserem conhecer Marighella, corram atrás do livro de Mário Magalhães. Por tudo, é um deleite percorrer as mais de 730 páginas – pela densidade, pela narrativa jornalística, literária, emocionante, empolgante. Deleite, maneira de dizer. Também provoca tristeza: por revelar a violência das classes dominantes, por matar tanta gente, e por matar Marighella. Agora, sem dúvida, pela criatividade, pela força, pelo movimento, pela ação, o livro e o filme valem a pena, tenham certeza.

Wagner Moura fez uma escolha: mapeou o Marighella da fase final, aquele cuja paciência havia se esgotado. Recordo-me, ao dizer isso, de diálogo entre ele e a grande militante do PCB, Ana Montenegro, amiga dele desde os anos 1940. Ela tentava dissuadi-lo da luta armada. Dizia-lhe:

– Marighella, um homem sozinho, sem o partido, pouco pode fazer.

Ana tinha afeição especial por ele. Marighella vai dar um jeito de ela sair do país por considerar corresse muitos riscos, ficasse no Brasil. Ela tentava inutilmente combater a perspectiva foquista do velho combatente – opinião dela, como de todo o PCB. Não adiantou nada. Ela irá para o exílio, e receberá a triste notícia da morte dele, na Alemanha, no dia 5 de novembro de 1969. Ela nunca se afastou do PCB, como Carlinhos Marighella.

Naquele diálogo com Ana, logo depois do golpe, Marighella responderá muito firmemente:

– Estou cansado de ficar na praia esperando a onda. Agora, não espero mais!

E foi à luta.

Wagner Moura o captura, com cinema de ação, a partir daí. É o Marighella disposto à luta armada a emergir no filme, inegavelmente de ação, muita ação, quem sabe inspiração vinda dos muitos filmes dessa natureza vividos por Moura, especialmente o que tem o Capitão Nascimento como protagonista.  Ação fundada na verdade, a ganhar vida a partir do livro de Mário Magalhães. Filme sempre deixa perguntas, buracos, especialmente quando se lança à aventura de esquadrinhar um grande personagem. E é filme ousado, cinema, não documentário.  No recorte, um belo filme, a deixar sem fôlego o espectador, como eu, Carla e Eleonora ficamos no Yara, em Havana.

A pretensão aqui não é resenha. Apenas, esse breve comentário. A registrar o simbolismo do filme, o papel dele como volta ao passado para decifrarmos o presente, a importância de conhecermos nossos heróis, reverenciar os tantos combatentes daqueles 21 anos de ditadura, a encontrar em Marighella o simbolismo para tal homenagem, o papel da cultura na luta contra o obscurantismo, a emergência de uma nova liderança político-cultural da Bahia e do país, esse guerrilheiro Wagner Moura, cujo destemor derrotou a censura lado a lado com Marighella, e o quanto pode, também, um jornalista afinado com a História, como Mário Magalhães.

Marighella, presente!

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros