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Sônia Bridi deu uma aula de humanidade e de jornalismo. A criança mirrada agarra-se ao ombro terno de uma mulher como se ali estivesse a esperança de vida

A imagem ficou em minha retina: a moça caminhava, olhos semicerrados, abraçava uma criança esquálida, nua, forte e carinhosamente.

A moça, jornalista. Sônia Bridi cobria a tragédia Yanomami. Revelava ternura, compaixão, envolvimento.

Pensei em jornalismo. E nas lições assépticas das escolas, algumas lições. Não se envolva nas coberturas. Apenas cubra. A moça nos dava outra lição.

O abraço carinhoso, o socorro a caminho do helicóptero, o acolhimento, ensinava outra coisa: o jornalista é parte da história, não está fora dela.

Tem jeito de ficar insensível diante de um genocídio? Ainda mais quando ele se apresenta assim, à luz do dia, pele e osso?

Ainda há quem duvide tratar-se de genocídio?

Quem sabe, naquele momento, a palavra cobertura tomasse um outro sentido. Rimasse com humanidade, fraternidade, amor.

Cobertura podia também significar cobrir o ser humano com mãos carinhosas, necessitasse. E como aquela criança necessitava: ela se abriga se agarra com as forças restantes naquele ombro como o último lugar do mundo a encontrar apoio carinho.

Às vezes é assim: diante da dor, surge um ombro cheio de amor inesperado socorro improvável abrigo. O ombro de Sônia Bridi.

Chico Pinheiro disse: a imagem dela com a criança no colo valia mais que todas as matérias já feitas por ela. Valia.

Redime, dirá o mesmo Chico, “todos os equívocos que cometemos”, e como cometemos, não é?

Ele também disse ser aquela foto uma aula de jornalismo, como estou dizendo. Jornalismo e seus dogmas me irritam.

O mundo, vasto mundo, não é território para a isenção, o distanciamento. Para a busca da verdade, sim. Para uma atitude honesta diante dos fatos, sim.

Isenção, imparcialidade, é coisa para os deuses, e sorte do ser humano capaz de falar com os deuses. Não tenho esse privilégio.

Padre Renzo Rossi, sobre quem escrevi biografia, dizia: Deus escolhe a quem ele dá o dom da fé. Não fui escolhido. Paciência.

Nós, no jornalismo, a lidar sempre com a tragédia, com o sofrimento, com a dureza da existência, estamos condenados a mergulhar em meio a tudo isso, no meio desse mundo pleno de contradições, e tentar revelar tal realidade certos de nossas insuficiências e dos inevitáveis equívocos ao longo da caminhada, frutos das rigorosas estruturas dos monopólios empresariais e de nossa precária subjetividade.

Mergulhados no mundo, somos nós e nossas circunstâncias. Nem sempre nos bastam as desculpas das grandes estruturas a nos limitar. Às vezes, nossas atitudes podem ir além delas. Às vezes, podemos e devemos confrontá-las. Nossa humanidade e coragem podem falar mais alto e nos convidar a sair da ortodoxia, da desumanidade da ortodoxia advinda do mundo da mercadoria, e tão somente dela.

Não, não vou me iludir e nem tentar iludir ninguém. Há de fato mecanismos muito poderosos, a limitar o exercício do jornalismo. Todos sabemos disso. Mas isso não impede a possibilidade de resistir à barbárie, e ao resistir evidenciar a existência do jornalista a se comover, a se envolver no acontecimento, a não se pretender frio e isento, a oferecer um ombro solidário.

Podia falar do novo governo, o governo Lula, a começar a tomar medidas enérgicas contra o genocídio. Aqui, no entanto, falo somente de minha emoção diante da foto da moça com a criança Yanomami no colo.

Como se ela sintetizasse a tragédia de um povo – tragédia centenária.

Presente desde sempre, desde o início do Brasil.

Como se ela nos conclamasse.

Como se dissesse basta. Como se nos alertasse contra o domínio do vil metal, e aqui domínio violento, busca de minerais, atrás do ouro, e o ser humano Yanomami apenas um estorvo a ser posto de lado para morrer.

A criança com o rosto enfiado no ombro de Sônia Bridi nos recorda os horríveis desertos em plena floresta criados pelo garimpo criminoso e ilegal, a mata sumindo engolida pelo capital.

O povo Yanomami carrega nas costas, ainda, o “Massacre de Haximu”, de 1993, dezesseis indígenas mortos por garimpeiros, cuja tipificação como crime de genocídio foi confirmada pelo STF em 2006.

Crime continuado, antigo.

A criança mirrada agarra-se ao ombro terno de uma mulher como se ali estivesse a esperança de vida como se a mãe surgisse de novo naqueles braços, eternos ombros e braços de mulher, a socorrer quem deles necessite.

A ditadura militar encarregou-se também da persistente tentativa de massacrar as populações indígenas, e aquela criança também nos lembra disso – documentos e relatos da Comissão da Verdade apontam mortos em remoções forçadas de indígenas, crises de abastecimento, epidemias inoculadas propositadamente. A construção de estradas e a exploração de minérios nunca vinham sozinhos.

No melhor sentido, essa foto marca um momento de acerto de contas.

A nação brasileira tem dívidas com os povos indígenas. Deles, nascemos.

São os povos originários – comum nos esquecermos disso. O governo Lula está compreendendo isso.

O garimpo criminoso, tal e qual se realiza nas áreas Yanomami, tem de parar.

Aos indígenas, garantir o uso da terra, da floresta, única maneira de preservá-la. É o mínimo de reparação a se fazer. Com todas as nações indígenas, e de modo especial, nesse momento, com o povo Yanomami.

Obrigado, Sônia Bridi.

Uma aula de humanidade e de jornalismo.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros