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Para fazer uma gestão melhor que as suas duas anteriores, o presidente Lula precisa reforçar um papel no qual ele é imbatível: o de negociador e pacificador

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito num pleito absurdamente desigual, volta à chefia do Poder Executivo com enormes desafios, a começar pela necessidade de construir as condições de governabilidade antes mesmo da posse, consumindo seu capital político na aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) indispensável à continuidade dos programas sociais e ao funcionamento da máquina pública. Além disso, recebe um país dividido ao meio pela postura inconsequente e beligerante do atual presidente, que sequer reconheceu publicamente a derrota eleitoral. Nessa perspectiva, mais do que quando assumiu seu primeiro mandato, em 2003, e para fazer uma gestão melhor que as duas anteriores, o presidente Lula não pode errar.

Antes de prosseguir, é preciso chamar a atenção para o conceito de governabilidade, sem a compreensão do qual fica difícil dimensionar o tamanho do desafio do presidente Lula. Trata-se de apresentar rapidamente as quatro condições de estabilidade para o sucesso de um governo, conforme segue.

A palavra governabilidade refere-se às próprias condições substantivas ou materiais de exercício do poder e de legitimidade do Estado e do seu governo, ambas derivadas da postura governamental diante da sociedade civil e do mercado.

Nessa perspectiva, a governabilidade diz respeito à autoridade política do Estado em si, entendida como a capacidade que este tem para agregar os múltiplos interesses dispersos pela sociedade e apresentar-lhes um objetivo comum para curto, médio e longo prazos, que, por sua vez, depende da relação entre a autoridade e as instituições de governo, bem como do poder das instituições que a ele se opõem.

Assim, a governabilidade estará ou não presente na medida em que haja apoio às políticas do governante e à sua capacidade de articular alianças e coalizões/pactos entre os diferentes grupos sociopolíticos para viabilizar o seu projeto de Estado e sociedade, conferindo-lhe legitimidade para implementar políticas.

Para garantir a governabilidade e evitar a paralisia ou o colapso das instituições e dos serviços públicos, é indispensável quatro tipos de estabilidade: política, social, financeira e de gestão.

A primeira estabilidade – a política – é crucial, pois tem relação direta com a legitimidade do governo. Ela depende, além da aceitação do resultado eleitoral, de apoio no Poder Legislativo, o lócus onde se forma a vontade normativa do Estado e o foro legítimo e apropriado para a solução das demandas da sociedade a serem traduzidas na forma de lei e de políticas públicas.

Uma boa relação com o Poder Legislativo é fundamental porque quando o Congresso Nacional possui agenda própria e diverge majoritariamente do programa do presidente eleito, o chefe do Poder Executivo, no sistema político brasileiro, só dispõe de três alternativas:

  • concordar com as propostas do Congresso, fazendo-as suas;
  • obedecer, ou seja, aceitar a contragosto o que for aprovado, até porque o Poder Legislativo dá a palavra final em decretos legislativos e emendas à Constituição e pode derrubar eventual veto às leis complementares e ordinárias, inclusive as resultantes de medida provisória; ou
  • ser derrotado e destituído, como aconteceu no Brasil pelo menos duas vezes nos últimos 30 anos.

A segunda estabilidade – a social – está relacionada à satisfação popular ou à ausência de protestos violentos, desordem, saques, tumultos, levantes, motins e outras formas de contestação ao governante. Nenhum governo, sem apelar para o uso da força, consegue enfrentar protestos longos e, salvo se migrar para uma ditadura, se sustenta contra o povo.

A terceira estabilidade – a financeira – tem a ver com a capacidade do governante de manter as obrigações do Estado em dia, tarefa que é enormemente dificultada em face do déficit primário e com a existência do teto de gasto, que congela o orçamento público. A crise fiscal do Estado, sua incapacidade de atender às demandas da sociedade e o aprofundamento de medidas de ajuste fiscal frequentemente conduzem a crises de governabilidade.

A quarta estabilidade – a de gestão – requer a criação e manutenção de instituições administrativas adequadas, a realização de concursos para contratar ou repor pessoal e, principalmente, grande capacidade de coordenação e de montagem de equipe qualificadas para dar efetividade às quatro macrofunções do Estado: l) funções políticas, que consistem na definição de direitos e deveres; 2) funções executivas e regulatórias, voltadas para a implementação de políticas; 3) funções jurisdicionais, direcionadas à solução de litígios; e 4) funções fiscalizadoras, voltadas ao controle da ação estatal.

No ambiente político atual, é necessário que o presidente da República tenha clareza dos desafios e, com base em diagnósticos precisos, calibre as prioridades de seu governo, sempre buscando atender às necessidades e urgências dos brasileiros, de acordo com as disponibilidades orçamentárias. A superação de boa parte desses desafios passa pela readequação orçamentária e pelo recrutamento de equipe ministerial – formada com base em critério como capacidade técnica, sensibilidade política, diversidade, representatividade e compromisso com um Brasil pacificado, democrático, soberano, justo e inclusivo – assim como pela organização de uma coordenação de governo capaz de harmonizar suas diretrizes com os interesses e necessidades do povo e dos entes subnacionais, numa articulação que maximize os esforços e os escassos recursos orçamentários.

O governo federal precisa liderar o país com prudência e equilíbrio e, principalmente, transmitir esperança e confiança ao povo. Esperança de que o status quo mudará para melhor e confiança de que o presidente e sua equipe serão capazes de transformar as promessas de campanha em realidade.

O presidente Lula, que receberá uma herança de desmonte e desacertos, sabe que não é momento de bravata ou de caça às bruxas, mas de muita calibragem nas decisões para não naufragar – ou encalhar – na partida. Uma leitura adequada da correlação de forças ajuda no equilíbrio na tomada de decisão e alerta para a necessidade de negociação em situações específicas, como houve no caso da desistência de lançar candidato próprio na disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados em 2023. Isso não significa, entretanto, que o novo governo não deva fazer uma faxina nos cargos de confiança no Poder Executivo, exonerando todos os ocupantes de cargo de livre provimento que conspiraram contra a eleição do presidente Lula, seja durante a campanha eleitoral, seja nesses movimentos de contestação do resultado eleitoral, ou mesmo que se engajaram politicamente, muito além do que demandava o dever funcional, na defesa do projeto “bolsonarista”.  Essa gente não pode, em hipótese alguma, ocupar posto de mando no governo, mesmo que seja funcionário de carreira. A pacificação do país passa por um governo coeso e a presença de adversários em seu interior não contribui em nada para tanto.

Assim, para governar com sucesso, e fazer uma gestão melhor que as suas duas anteriores, o presidente Lula precisa reforçar um papel no qual ele é imbatível: o de negociador e pacificador. Ao contrário do atual presidente, de estilo confrontador, Lula adota um estilo de gestão colegiada e coordenada, sempre na perspectiva da cooperação e não do conflito entre os poderes e os entes federativos.

Portanto, governar o Brasil, neste cenário, não será uma tarefa fácil. Felizmente o presidente Lula possui as quatro condições fundamentais: 1) equilíbrio emocional, 2) experiência, 3) capacidade de liderança, e 4) coragem para tomar decisões difíceis e, eventualmente, impopulares. É claro que as resistências virão de todas as partes, e para enfrentá-las é necessária uma comunicação honesta e eficiente, especialmente na defesa das reformas que serão necessárias – a começar pela tributária – para destravar a economia, gerar empregos e melhorar a renda, sob pena de um colapso com graves consequências sociais, econômicas e políticas. Sorte ao presidente Lula.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Ex-diretor de Documentação do Diap, é sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.