O PCB investia agressivamente contra Getúlio Vargas. De entreguista pra cima. Acordou para a vida quando o presidente, na madrugada de 24 de agosto de 1954, se suicidou, e com seu sangue, adiou o golpe militar por dez anos. O partido vinha embalado pela visão do Manifesto de Agosto de 1950, no qual chegava a propor a luta armada. Não conseguia ver o significado de um governo voltado à construção de uma nação soberana. Pouco se lhe dava a criação da Petrobras, do BNDES, do Banco do Nordeste. Pouco lhe interessava o aumento de 100% do salário mínimo. O PCB estava de viseiras, incapaz de analisar a conjuntura e de cerrar fileiras com o presidente, não obstante pudesse e devesse marcar suas próprias posições e buscar ainda maiores avanços. Fez o diabo para se explicar quando Getúlio se suicidou e milhões de pessoas foram às ruas para chorar a sua morte e protestar enfaticamente contra os golpistas.
A dificuldade de analisar a conjuntura, a incapacidade de olhar a correlação de forças, de tomar o pulso das forças em confronto em cada situação, cobra preço alto, sempre. De Lênin a Gramsci, sem esquecer Marx, a análise das forças em luta sempre foi essencial para balizar o ritmo das batalhas a serem travadas pelas forças de esquerda. Sem isso, caminhamos às cegas.
Em 1964, a esquerda superestimou as próprias forças, e não se preparou para o confronto inevitável. O golpe aconteceu praticamente sem resistência, sem nenhuma capacidade para detê-lo ou ao menos retardar a sua marcha.
O PCB dizia: se os militares botarem a cabeça para fora, nós a cortaremos. Nossas cabeças rolaram, por tenebrosos 21 anos. Para intervir na luta por hegemonia, é essencial conhecer o entorno, em toda sua complexidade.
Veio a ditadura, o recrudescimento dela em dezembro de 1968, o tempo do terror absoluto, e as organizações da esquerda armada, aí não era mais o PCB a cometer o erro, insistiam em seguir em frente na linha de o inimigo está nos cercando, não deixemos que ele escape.
Fomos trucidados pelos verdugos. Só recuperamos a iniciativa ao final dos anos 1970, quando o povo começou a ir às ruas, quando surgiu o novo sindicalismo liderado por Lula, a campanha das Diretas, quando se formou uma grande frente capaz de derrotar a ditadura, com o inegável papel do PMDB.
Não era a nossa coragem apenas o suficiente para derrotá-la. Era preciso mais – e o mais é sempre a participação popular, a entrada das classes trabalhadoras na luta política. Sem isso, não tem jogo. E elas só entram quando estão maduras, dispostas para tanto. Não são nossos gritos enfurecidos os combustíveis.
É convencimento, luta para a conquista de corações e mentes, luta por hegemonia, a exigir firmeza e lucidez.
Lembro, nas conversas com Waldir Pires, ele me contando. Ao chegar no exílio uruguaio, em 1964, os exilados, a esquerda toda, afirmava sem relutância: isso não dura seis meses. E foram 21 anos de ditadura. Longa luta para superar o sombrio período de terror e morte.
Estamos agora diante de um quadro novo: um presidente de convicções fascistas liderando um rigoroso programa neoliberal, caminhando na maré conservadora mundial. Uma nova hegemonia se configurou em 2018, com a eleição de Bolsonaro. Só foi possível a eleição dele porque houve a conquista de corações e mentes, ou, para dizer de outra forma, porque havia na sociedade, na cabeça das pessoas, uma ideologia capaz de receber as propostas reacionárias e conservadoras e apoiá-las. E continua a receber apoio. Duro, difícil admitir, mas verdadeiro.
Nossa luta não será pequena, não está sendo. E não sou dos seguidores da ideia de que a esquerda acabou. Besteira rematada. Ela está aí, presente em tantas lutas. Mas, numa fase de acumulação de forças, agindo na resistência, no caminho de reconquista de sua hegemonia, e não é um caminho fácil.
Nos últimos dias, há uma óbvia escalada autoritária. Costuma-se dizer não ser possível piorar o quadro atual. É possível. O governo, por várias iniciativas, vem numa escalada de aprofundamento do autoritarismo, com um inédito fortalecimento da presença de militares de alta patente no primeiro escalão do governo. Não se sabe o resultado disso, coisa boa não é – nosso companheiro José Dirceu nos alertou há alguns dias (Bolsonaro está batendo às portas de uma nova ditadura). E chego aos governadores nordestinos. A nota dissonante na vitória de Bolsonaro foi exatamente a atitude do povo nordestino. Houve o reconhecimento do quanto fora feito pelos governos de Lula e Dilma. De como a vida mudou com as políticas públicas adotadas por eles. E reagia positivamente, claro, aos próprios governos estaduais afinados com a presidência da República, cujas políticas seguiam a mesma toada, a mesma preocupação com os mais pobres. Foi uma vitória impressionante.
Trabalham hoje, todos, em condições de extrema dificuldade devido à óbvia perseguição por parte do governo federal, cujo objetivo é massacrar o povo nordestino, penalizá-lo pelo voto contrário ao retrocesso. São governos de esquerda lato senso, ou de centro esquerda, como se queira, diferentes entre si. Não seguem uma mesma cartilha na administração porque impossível. Mas têm procurado caminhos de unidade, com muita seriedade e competência, e o Consórcio Nordeste é um claro exemplo disso. Sem procurar confronto aberto, sem qualquer atitude de dissensão, estão construindo alternativas para dirigir seus estados, e o fazendo sem disputas menores entre si. Até uma caravana à Europa fizeram, o consórcio à frente, de modo a buscar investimentos para beneficiar suas populações. E vão tocando a vida, procurando, em cada estado, desenvolver políticas destinadas a melhorar a vida do povo.
A me impressionar, aqui e acolá, por parte de companheiros e companheiras de esquerda, uma atitude agressiva, em alguns casos quase obsessiva, de ataques a esses governadores, perdendo inclusive o foco principal, o de ser oposição ao atual governo federal, a massacrar continuamente o nosso povo, e de modo especial a população nordestina.
Tenho convicção de que todo governo merece críticas, e elas são positivas. Mas, se provenientes do nosso campo, devem levar em consideração, lição antiga, sobre quem é o inimigo. Os governos nordestinos, com toda sua importância e seu papel para as populações, não podem e não devem ser considerados inimigos. Têm feito o possível no sentido de enfrentar os desafios de uma conjuntura muito difícil. Têm sido bem-sucedidos, procurado sempre atender aos mais pobres, os milhões de deserdados da região, com situação extremamente agravada com a destruição das políticas de assistência social e com o fim do financiamento para projetos nos estados.
Disse em texto recente da infantilidade de alguns em pretender comparar governadores nordestinos a Bolsonaro. Além de falso, dizia, isso prestava serviço ao presidente fascista. É um desserviço à causa democrática. A hora é de unir forças para tentar barrar a escalada fascista. Não de regressar aos tempos em que Lênin era obrigado a combater a doença infantil do esquerdismo no comunismo. A infantilidade junta-se à irresponsabilidade e ao desconhecimento da realidade: governadores como Rui Costa e Flávio Dino têm confrontado Bolsonaro quase diariamente.
Incapacidade de analisar a correlação de forças, de fazer um retrato do quadro hegemônico, investigar as condições reais da luta de classes, tudo isso tolda a visão das pessoas, torna-as pequenas, envoltas em questões menores, prisioneiras do supérfluo. Olham apenas a árvore, são incapazes de lançar olhares à floresta.
Há uma grande luta em andamento. Não é de curta duração. Precisamos aglutinar forças. E se é necessário reunir todos os que tenham compromissos com a democracia para enfrentar o quadro atual, imaginemos o quanto são necessários, importantes, fundamentais, os governadores do Nordeste, espécie de bastião da resistência democrática. Temos é de fortalecer e lutar para aprofundar tudo o que de positivo vem sendo feito por eles, e não jogar água no moinho dos adversários. Eles têm sido vozes essenciais no confronto ao bolsonarismo, e vozes ouvidas, porque com apoio popular.
Os que disserem ser possível fazer muito mais podem estar certos. Só que para fazer é preciso ter condições, ter financiamento, e o quadro é de escassez porque muita coisa depende do governo federal, cuja torneira, por obviedade, está fechada. Temos é de cerrar fileiras com os governos do Nordeste, e lutar para que os escassos recursos disponíveis sejam voltados cada vez mais aos mais pobres, isso sim. O povo nordestino foi sábio ao impor uma dura derrota ao bolsonarismo, e continua a sê-lo, ao apoiar seus governantes. Melhor acreditar nele, e segui-lo.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros