Colunas | Cinemateca

No cinema também se destacaram artistas libertários. Diretores de obras magistrais nos brindaram com obras rebeldes inesquecíveis. Selecionamos alguns filmes com a indicação da plataforma para assistir em casa

Parte 9 – Levantes: “Inconformistas, iconoclastas e subversivos”

Arte presa a esquemas industriais, respeitosa das convenções e dos bons costumes, é de admirar que no cinema haja alguns notáveis inconformistas – tanto diretores quanto personagens. Nos velhos tempos, destacaram-se artistas libertários, como os do período do Front Populaire, a exemplo de René Clair e Jean Renoir, diretores de obras magistrais. Uma rápida recensão traz à baila Jacques Tati, Agnès Varda, os irmãos Coen, Kusturica, Nanni Moretti, Pedro Almodóvar. Inconfundíveis, fazendo filmes de estilo com assinatura, esses diretores nos brindaram com obras rebeldes inesquecíveis. Mas há filmes avulsos, ou desconhecidos, na mesma linha. Entre os mais criativos, note-se como aumenta o número de mulheres diretoras, sinal dos tempos.

Sátiras ao sistema

Sinfonia da Necrópole (2014, dir.: Juliana Rojas). Originalíssimo filme brasileiro: musical todo cantado, passa-se num cemitério, com personagens coveiros. E é uma crítica à especulação imobiliária, entre outras barbaridades.

Rock em Cabul (2015, dir.: Barry Levinson). Humor negro, até macabro, mas engraçado. Imaginem, fazer um show de rock na capital do Afeganistão, nos tempos que correm!... com os talibãs que avançam matando e esfolando em seu afã puritano.

Que Mal Eu Fiz a Deus? (2014, dir.: Philippe de Chauveron). O louvor da diversidade levado à caricatura. Casal francês católico e conservador, com quatro filhas, acolhe um genro árabe muçulmano, um judeu e um chinês. Só falta um candidato negro.

Vício Inerente (2016, dir.: Paul Thomas Anderson). Baseado em romance de Thomas Pynchon, bardo dos hippies, da desobediência civil e dos ideais libertários. A paranoia dos sobreviventes, nos quais reside a “reserva moral da nação”.

Aprendendo Com a Vovó (2015, dir.: Paul Weitz). Uma avó “meia oito” dando lições de vida, de sabedoria e de liberação para a neta adolescente que precisa de um aborto. Com Lily Tomlin.

A Vida É Um Milagre (2004, dir.: Emir Kusturica). Na antiga Iugoslávia, um engenheiro assentado na vida prepara-se para construir uma estrada de ferro, atendendo aos interesses turísticos da região. Não percebe que uma guerra cruel se aproxima e vai transtornar o destino de todos.

Schultze gets the blues (2003, dir.: Michael Schorr). Operário gordinho alemão aposenta-se e vai para a Louisiana atrás da música creole cajun “zydeco”, que ouvia no rádio. Grandes cenas em barcos caindo aos pedaços nos bayous, onde ele confraterniza, toca, dança e acaba morrendo do coração, feliz. Uma graça. Premiado em Veneza.

Meu Tio (1958, dir.: Jacques Tati). Os escassos seis filmes de Jacques Tati compendiam uma crítica à modernidade e aos rumos pelos quais o século 20 nos levaria. Neste, o desengonçado protagonista, excêntrico e inadaptado, é a negação da eficiência capitalista.

Le p´tit Quinquin (2015, dir.: Bruno Dumont). Uma graça de filme sobre um menino esquisito. Seu antagonista, o detetive que procura desvendar os crimes na região, é um velho cheio de tiques nervosos. Cahiers du Cinéma o elegeu um dos melhores da década. Premiado em Cannes.

Micmacs – Um plano complicado (2009, dir.: Jean-Pierre Jeunet). Sátira francesa à corrida armamentista e aos fabricantes de armas. Um punhado de personagens, todos feios, mal vestidos, marginais, semidelinquentes, mostra-se decidido a punir os vilões.

Até Que a Gente Te Separe (2018, dir.: Jackie van Beek e Madeleine Sami). Desabusado filme neozelandês, em que duas amigas fundam uma agência de “separar casais” (uma agência antimatrimonial? ou de descasamentos?).


Relatos Selvagens
(2014, dir.: Damián Szifron). Ótimo filme argentino em seis episódios. Grotesco, heterodoxo, demolidor, parece de discípulo de Almodóvar – e lá está nos créditos a produtora El Deseo, dos irmãos Pedro e Agustín.

Não Olhe Para Cima (2021, dir.: Adam McKay). Sátira arrasadora à era Trump e seu legado de fake news, negacionismo, obscurantismo, canalhice, ódio e violência. Uma dupla de astrônomos avisa que um cometa a caminho da Terra vai destruí-la e enfrenta deboche.

Os Deuses Devem Estar Loucos (1980, dir.: Jamie Uys). Garrafa de Coca-Cola é jogada de avião sobre tribo de bosquímanos, no deserto do Kalahari, pondo em risco a sobrevivência da comunidade. Divertidíssimo. Teve continuação. O diretor é da África do Sul.

O mal-estar na civilização

A Febre (2004, dir.: Carlo Nero). Elenco de militantes: Vanessa Redgrave, Angelina Jolie e Michael Moore. Mulher de país rico viaja como turista, transformando-se ao descobrir a pobreza do resto do mundo e as muitas guerras que o assolam.

Cadê Você, Bernadette? (2019, dir.: Richard Linklater). O enigma de uma arquiteta meio amalucada, inconformista e desadaptada, casada e com filha adolescente, que há 20 anos não trabalha, apesar de ter ganho no passado um prêmio de excelência.

Partner (1968, dir.: Bernardo Bertolucci). Surpreendente filme experimental, destoando dos demais filmes do autor, bem mais convencionais enquanto narrativa. Baseado em O Sósia ou O Duplo, de Dostoievski. Bertolucci adere à Nouvelle Vague e imita Godard.

Minha Mãe (2015, dir.: Nanni Moretti). Expoente do mal-estar na civilização, Nanni Moretti fala de vagas moléstias, desavenças consigo mesmo, desassossego com o mundo. Aqui, a protagonista é uma diretora de cinema. Fino, sutil e um pouco perplexo, como costumam ser os filmes deste diretor cult. Prêmio em Cannes.

Supercondríaco (2014, dir.: Dany Boon). Com o próprio Dany Boon e sua impagável cara de depressivo crônico. A lembrar o Nanni Moretti de Caro Diário (1993), às voltas com uma doença que refuga diagnósticos e métodos de cura.

O Grande Lebowski (1998, dir.: irmãos Coen). Um pequeno grupo de amigos unidos pela devoção ao boliche. São hippies tardios, desempregados, gente sem eira nem beira que fuma maconha, um deles até veterano do Vietnam com trauma de guerra. Mas são muito, muito simpáticos.

J´invente rien (2006, dir.: Michel Leclerc). Divertidíssimo: zombando da eficiência capitalista, defende os direitos dos “bons à rien”, que não servem para nada, que se atrapalham com tudo, mas são o sal da terra.

Mamute (2010, dir.: Gustave Kervern). Um Gerard Depardieu notável (como sempre), vive um brutamontes, operário de matadouro de porcos, que sai em viagem de moto em busca do passado.

Archimède le clochard (1959, dir.: Gilles Grangier). Com Jean Gabin (Urso de Prata em Berlim para o grande ator) fazendo um clochard ilustrado. Ele faz de tudo, canta, dança, quebra um bar inteiro etc. Ao fundo, a França em reconstrução no pós-guerra.

Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência (2014, dir.: Roy Andersson). Leão de Ouro em Veneza. Cenas quase sempre deprimentes, com certeza é satírico, mas também meio sinistro. Filme sueco brilhante e originalíssimo.

O Novíssimo Testamento (2015, dir.: Jaco Van Dormael). Delicioso filme belga meio surrealista. Deus, que vive em Bruxelas munido de computadores e celulares, é um sádico que se diverte atormentando os humanos.

Perdidos em Paris (2017, dir.: Dominique Abel e Fiona Gordon). Um casal de mimos, discípulos de Jacques Tati, dirigem e protagonizam este filme inteligentíssimo.

Laranja Mecânica (1971, dir.: Stanley Kubrick). Inventivo como poucos, o diretor enfrenta, sem avançar uma solução, o paradoxo proposto por Freud: o de que a civilização se constitui à custa de reprimir dois instintos básicos, a sexualidade e a agressividade, resultando em mal-estar.

A Comilança (1973, dir.: Marco Ferreri). Crítica à sociedade capitalista, ao consumismo e ao hedonismo. Quatro grandes burgueses combinam comer até morrer.

Melancholia (2001, dir.: Lars von Trier). O grande cineasta dinamarquês brinda-nos com um filme sobre o fim do mundo. Mas nada a ver com mortos-vivos e vampiros: o filme não é para criancinhas. Prepare seu coração.

Manifesto (2017) – Filme experimental da parceria entre Cate Blanchet e o videoartista Jules Rosefeld. Com alcance para o estado atual do mundo, discutem-se manifestos da arte moderna e reflexões sobre o cinema provenientes de Jean-Luc Godard e Jim Jarmush.

A Criança (2005, dir.: Irmãos Dardenne). Ninguém como esses belgas para sondar o que aconteceu com aqueles que ficaram para trás na afluência e na prosperidade geral trazida pelo capitalismo avançado aos países privilegiados.

Nomadland (2021, dir.: Chloe Zhao). Mulher de meia idade ganha as estradas em sua caminhonete, ou van, meio bombardeada, e vai encontrando outras pessoas desgarradas como ela própria. O que aconteceu com as promessas da prosperidade?

Fábulas da esperança

Milagre em Milão (1951, dir.: Vittorio de Sica). Desabrigados da guerra são expulsos de ocupação em terreno baldio por especuladores imobiliários, nos arredores de Milão. Mas logo depois, reunidos na praça central, a praça do Duomo, sobem aos céus montados em vassouras, em alegre cavalgada. Um clássico.

Pride – Orgulho e Esperança (2014, dir.: Matthew Warchus). Militantes gays levam seu apoio aos mineiros em greve, quando Margaret Thatcher resolveu acabar com eles. Ao fim os mineiros manifestaram gratidão e passaram a participar da Parada Gay. Uma lição de política.

Libre et assoupi (2014, dir.: Benjamin Guedj). O simpático protagonista é contra o trabalho e resiste tenazmente a qualquer tentativa de obrigá-lo a fazer alguma coisa. Crítica à cultura da eficiência e da produtividade.

Acertando o Passo (2019, dir.: Richard Loncraine). Divertido filme inglês, pequeno em aparência mas não em alcance. Abandonada na velhice pelo marido que a troca por outra ao fim de uma vida de dedicação, mulher aprende a se divertir. Uma ode à alegria de viver.

Temps de Chien (2019, dir.: Edouard Deluc). Hino aos pobres-coitados que perdem a corrida. Capitão de bateau-mouche vê sua vida desandar. O protagonista é magnificamente servido por Philippe Rebbot, magérrimo, cabelo em falripas cercando a calvície, barba mal feita, grossos óculos e fala aos arrancos.

A Herança da Verdade (2019, dir.: Lynn Shelton). Raro no cinema americano, outro hino aos pobres-coitados que perdem a corrida. A herança de uma espada (falsa, é claro) que dizem confederada e provada na Guerra da Secessão. A Ku Klux Klan entra na disputa, insistindo que o Sul ganhou a guerra.

Forrest Gump O contador de histórias (1994, dir.: Barry Levinson). O protagonista, simplório e apoucado, vive pessoalmente os episódios mais marcantes de uma boa fatia da história dos Estados Unidos. Encantador. O filme teve extraordinário sucesso e ganhou seis Oscars.

Na Pista do Marsupilami (2012, dir.: Alain Chabat). Um simpático animal fantástico, um guia com prole numerosa e um repórter aliam-se na defesa da natureza e do meio ambiente, contra um ditador latino-americano, um cientista corrupto e outros exploradores. Um filme adorável.

A Incrível História da Ilha das Rosas (2020, dir.: Sidney Sibilia). Uma história real: um arquiteto italiano cria uma ilha a partir de um aterro que constrói e ali funda um estado independente, fora do alcance jurídico da Itália. Interessantíssimo.

Lazzaro Felice (2018, dir.: Alice Hohrwacher). Maravilhoso filme italiano. Uma comunidade de miseráveis camponeses vive no sul da Itália sob costumes feudais. Mudam-se para a cidade, onde vivem na periferia, meio acampados, subsistindo graças a expedientes, gatunagens e pequenos golpes.

A Montanha Matterhorn (2013, dir.: Diederik Ebbinge). Lição de tolerância em graciosíssimo filme holandês. Viúvo solitário e soturno passa a tomar conta de um deficiente mental e vai aprendendo a ser solidário. Ótimo.

Les Petites Fugues (1979, dir.: Yves Yersin). Filme suíço. Velho lavrador enfrenta as frustrações: compra uma moto com seu seguro-velhice e sai por aí se divertindo, para escândalo alheio e censura da família.

O Ladrão de Luz (2010, dir.: Aktan Arin Kubat). Belo, raro e profundo filme do Quirquistão sobre a modernização das periferias da globalização. Grande protagonista mongol, o sr. Luz luta pela energia eólia nas montanhas do Quirguistão, enquanto magnatas interesseiros tentam impedi-lo.

Os Catadores e Eu (2000, dir.: Agnès Varda). A grande cineasta documenta o direito imemorial, que já está na Bíblia, de respigar após a colheita, catando o que ficou caído no chão. Atualizado, focaliza aqueles que vivem das sobras e do desperdício da sociedade de consumo.

Tudo Sobre Minha Mãe (1999, dir.: Pedro Almodóvar). Um filme demolidor, mas esperançoso. Trata de travestis e de prostituição sob a Aids, mas também de vários tipos de amor e de amizade. Vale a pena ver outros filmes do diretor.

Onde assistir

A Comilança - Youtube

A Febre - HBO Max

A Incrível História da Ilha das Rosas - Netflix

Acertando o Passo – NOW, AppleTV, Vivoplay

Aprendendo Com a Vovó – NOW, GooglePlay, YoutubePlay, AppleTV

Até que a Gente Te Separe – Netflix

Cadê Você, Bernadette? NOW, GooglePlay, AppleTV

Forrest Gump – NOW, Telecine, GloboPlay, GooglePlay, Primevideo, Youtube

Laranja Mecânica – NOW, GooglePlay, YoutubePlay, Primevideo

Lazzaro Felice – Netflix

Manifesto – NOW, GooglePlay, YoutubePlay, AppleTV

Melancholia – Mubi

Meu Tio – Telecine

Micmacs – NOW, Youtube, GooglePlay, AppleTV

Milagre em Milão – NOW, GooglePlay, Youtube

Não Olhe Para Cima – Netflix

O Grande LebowskiTelecine, GooglePlay, YoutubePlay, PrimeVideo

O Novíssimo Testamento – NOW, Globoplay, GooglePlay, YoutubePlay, AppleTV

Os Catadores e Eu – Mubi

Os Deuses Devem Estar Loucos – GooglePlay, YoutubePlay

Perdidos em Paris – NOW, GooglePlay

Pride - Orgulho e Esperança – NOW, GooglePlay, Youtube

Que Mal Eu Fiz a Deus? – NOW, GooglePlay, Youtube, AppleTV

Relatos Selvagens – NOW, GooglePlay, Youtube, AppleTV

Rock em Cabul – Netflix, Youtube, AppleTV

Schultze gets the blues – GooglePlay

Sinfonia da Necrópole – Netflix, GooglePlay, Youtube, AppleTV

Supercondríaco – GooglePlay

Tudo Sobre Minha Mãe – NOW, GooglePlay,  PrimeVídeo, Mubi

Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência – NOW, Looke, GooglePlay, AppleTV

Vício Inerente – GooglePlay

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate