Ando revisitando Rosa Luxemburgo, e é revisitando mesmo porque já havia lido um bocado de coisas dela, agora releio, e ia novamente escrever sobre ela, e creio falaria coisa interessante – ela e a Revolução Russa. Há poucos dias fiz um texto sobre seu mergulho final na revolução espartaquista, seu fim trágico. Empaquei. Não, não será agora. Será o próximo texto.
Fui provocado por outra inquietação. Tem a ver com a conjuntura. Não no sentido da política cotidiana, da nossa tragédia diária atual. Tentar refletir um pouco além, se tiver condições, se minhas armas forem suficientes, e não tenho certeza o sejam.
A imagem bíblica da travessia do deserto me assalta. Demorada, não? Dura. Requereu muita fé. De Moisés e do povo. Estamos em meio à travessia. Não estou insinuando um trajeto de 40 anos. Nem fixando tempo.
A terra de Canaã está longe, e aí já não é mais Moisés – é Abraão. É a terra da fartura, de onde jorra leite, azeitona e mel. Conselheiro também foi atrás dela. É a tal da utopia. Presente na história da humanidade. Fundamental para a esquerda.
Veio de Venício Lima, querido amigo, o conselho: leia a Bíblia. Ali tem sabedoria milenar. Cultura. Tenho feito isso, sem qualquer disciplina. Justo eu, ateu, iria ter? Mas, há muita razão no aconselhamento. Ler o Apocalipse não é também tão sem fundamento nos dias de hoje – ou a humanidade toma juízo, ou a profecia se realiza.
Eu sei. Temos pressa. O mundo deveria ter pressa. A dinâmica autodestrutiva do capitalismo é voraz, e não cede diante de qualquer racionalidade. Mas, não tem jeito: temos de fazer como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar. Única maneira de chegar a porto seguro, se conseguirmos chegar. No caso brasileiro, no meio da pandemia e do nosso desastre político advindo do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro.
Servidão voluntária
Não adianta agonia, precipitação, voluntarismo. Aqui, reclama-se, além da Bíblia, a recomendação de Romain Rolland: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade, fórmula acionada por Antonio Gramsci.
Duas pesquisas reforçaram minhas inquietações sobre a luta pela hegemonia. Tive vontade de reler, além do nosso Gramsci, Marilena Chaui e a servidão voluntária, quando me deparei com as sondagens. O povo tem seu tempo, vou falar é disso.
A primeira pesquisa, do DataFolha, de dezembro de 2019, indica a cara típica do fiel evangélico brasileiro: é feminina e negra. É importantíssima. Nada menos que 58% desse grupo religioso é constituído por mulheres negras, seis pontos acima da parcela feminina do país, atualmente fixada em 52%.
Anotem: entre as congregações neopentecostais, entre as quais se encontram as poderosas Universal do Reino de Deus e Renascer em Cristo, a participação do mulherio chega a 69%. A pesquisa revela, ainda: entre os católicos, ainda a maior crença do país, embora em processo contínuo de retração, mulheres são 51%, homens, 49%, números compatíveis com os dois gêneros na sociedade.
A outra pesquisa, do DataPoder360, publicada no dia 16 de junho desse 2020, indica: 1) aprovação geral de Bolsonaro, 28%; 2) nos desempregados ou sem renda fixa, sobe para 33%; 3) entre os beneficiários do chamado coronavoucher de R$ 600, aprovação de 34%; e 4) entre os sem estudo ou só com ensino fundamental, fica em 29%.
É nas classes trabalhadoras mais pobres que se ancora principalmente a aprovação de Bolsonaro, cujo declínio é evidente, como é notório o crescimento da rejeição, em torno de 47%, segundo a pesquisa. Em outros níveis de renda, o segundo melhor desempenho do atual presidente situa-se entre os trabalhadores de até dois salários mínimos, cuja avaliação positiva chega a 25%.
Extrema-direita e luta político-cultural
Não pretendo discutir no detalhe as duas pesquisas. Quero destacar a necessidade de a esquerda discutir em profundidade a luta pela hegemonia, olhando o horizonte, quando pensamos na primeira pesquisa, e o mais imediato, quando olhamos a segunda, embora obviamente elas tenham íntimas ligações.
A extrema-direita faz luta político-cultural, sabe fazer, tem feito bem. O crescimento das crenças neopentecostais é parte fundamental nessa luta. Diz combater Gramsci, mas segue boa parte de sua concepção de luta pela hegemonia. O sucesso da luta política está indissociavelmente ligado à conquista de corações e mentes, e a religião é parte dessa conquista, e melhor ainda se utilizada de modo consciente para objetivos políticos, como tem sido com as igrejas evangélicas neopentecostais.
Não basta apenas dizer da existência de pastores evangélicos voltados à acumulação de riqueza. Verdade. Mas, tais igrejas e pastores devem ser olhados de um modo mais amplo. Um dos aspectos centrais da vitória de Bolsonaro esteve no apoio militante das igrejas evangélicas, parte de uma visão de mundo, de um projeto de poder. Poder político.
Nessa cruzada, já de algumas décadas, vê-se a importância da conquista das mulheres, essenciais na luta política, na disseminação das ideias centrais da religião, na busca, engajamento das mulheres trabalhadoras negras, situadas entre as classes mais pobres. Os pastores sabem do papel das mulheres na disseminação de ideais, do papel delas na luta ideológica.
Tais igrejas vão ganhando terreno. Num processo incessante de doutrinação, de conscientização, de divulgação a seu modo do Evangelho, de investimento em grandes aparatos de comunicação, tantas tevês, as igrejas evangélicas vão caminhando passo a passo, e aceleradamente agora, para ser a principal força religiosa do país, e contando com um poderoso e disciplinado exército feminino, indispensável. Uma força política.
Bolsonaro e apoio entre os pobres
A segunda pesquisa mostra o apoio ainda real de Bolsonaro entre os trabalhadores e trabalhadoras de zero a dois salários mínimos. Esse, o segredo da manutenção do apoio de um terço dos brasileiros. Os de maior renda estão saltando do barco. Está claro: de uma maneira ou de outra, as coisas se vinculam, embora de modo não tão automático. O exército evangélico está perfilado, e o ajuda muito, inegavelmente. Independentemente disso, no entanto, esse apoio vai além dos religiosos.
É um alerta a todos nós. Um alerta entre tantos à esquerda. Talvez, para usar uma linguagem próxima, devamos ser menos leninistas e mais gramscianos. A luta de classes se dá também no terreno das ideias. E não custa lembrar a máxima marxista: a ideologia da classe dominada é a das classes dominantes. Até que a luta ideológica, a persistente batalha cultural consiga modificar o quadro. Se soubermos fazer essa luta.
O convencimento, a luta serena para enfrentar o pensamento conservador presente na cabeça do nosso povo, inclusive dos evangélicos, não se fará num estalar de dedos. Demanda tempo. Nosso rancor militante deverá ser aplacado. Dar lugar à razão, mas razão temperada com emoção, com carinho, com capacidade para ouvir a opinião contrária, a visão de mundo diferente da nossa, capaz de ceder, de incorporar valores positivos presentes no pensamento diverso do nosso, às vezes tão esquemático e autoritário.
É preciso estarmos atentos à diversidade, não só aquela própria das nossas inflexíveis crenças racionais. Sairmos ousadamente dos nossos guetos, não custa insistir o quanto temos dificuldades para fazer isso, inclusive no campo da linguagem.
Não, não parti da Bíblia no início do texto por acaso. A religião é parte da cultura. Gramsci, volto a ele, se interessou profundamente pelo estudo da Igreja Católica, e não foi à toa. A religião integra a existência humana na terra. Permite ao ser humano encarar a finitude. É cultura, está impregnada na alma popular. De todo o mundo. Não pode ser subestimada. Foi elemento fundante do nascimento do PT, talvez caiba lembrar. É local de acolhimento, e a política também deve ser, aprender com as religiões, acolher, abraçar.
Reconquistar nosso povo
Falo tudo isso em nome da política, da necessidade de pensarmos a luta pela hegemonia com mais profundidade, de compreendermos o ritmo do nosso povo, porque sem ele não há jogo. A coragem é parte essencial da luta política. Mas sozinha nada resolve. O voluntarismo animado pela coragem não é bom conselheiro. É preciso sempre considerar a correlação de forças, acompanhar o pensamento, o coração, a alma da população.
Nós, da esquerda, e não tão raramente, desenvolvemos um discurso e uma prática voltados para o nosso próprio território, e pouco para fora, para as multidões despossuídas. O povo brasileiro, com sua imensa, complexa diversidade, com sua variada composição racial, com a maciça presença negra, com suas incríveis, ricas expressões culturais, tem seu ritmo. Tem seu tempo. Tanto podemos recordar suas inúmeras lutas, como podemos lembrar sua capacidade de negociar, transacionar, conciliar, seus cuidados para não dar murro em ponta de faca.
Estou lendo simultaneamente dois livros: Um Defeito de Cor e O Candomblé da Barroquinha. Os dois mergulham na constituição do povo brasileiro, na perversidade da escravidão, mostrando como os negros e negras escravizados foram aprendendo a lutar e a negociar, ir se mexendo habilidosamente em meio ao cipoal montado pelas classes dominantes. Conflito e negociação permanentes. Avanço e recuo para sobreviver, existir, e afirmar sua cultura.
A conjuntura atual reclama reflexão – não, repetir fórmulas antigas.
Vamos combinar, dizer o simples, mas necessário: fomos derrotados em 2018. Houve fraudes, mas foi mais do que isso.
Não somos uma ilha. A extrema-direita deu passos em várias partes do mundo. Com seus novos instrumentos, dos quais teremos de nos apropriar a nosso modo para disputar hegemonia.
Podemos ganhar as eleições de 2022, podemos perder, e não é esse o objeto desse artigo.
Minha ênfase é insistir: precisamos reconquistar nosso povo, a nova e deserdada classe trabalhadora, muito distante hoje daquele sonhado chão de fábrica. Precisamos nos lançar à luta político-cultural, dialogar com a nossa gente, sem preconceitos, com os mais novos e os mais velhos, inclusive com crentes de toda natureza, pregar a unidade na diversidade, unir a Nação, chegar à imensa maioria da qual estamos afastados, com a qual não temos dialogado. Desde já, com pandemia e tudo.
É dura a travessia do deserto. Exige paciência. Tenacidade. E nós estamos nele, no difícil deserto. Nesse Brasil da pandemia, do abandono do povo por parte desse governo, gente morrendo de peste, de fome, de desemprego. Morrendo de bala ou vício.
A luta pela hegemonia nesse cenário é ainda mais dura. Requer o pessimismo da inteligência, a capacidade de analisar o cenário, às vezes desanimador.
Cair e levantar. Seguir adiante.
Conscientes de uma coisa: a esquerda só pode conquistar corações e mentes se conversar, dialogar com o espírito aberto, disposta não a ganhar tudo, mas avançar na conquista da democracia e da liberdade, de um país mais justo.
Ter paciência de acompanhar o ritmo do povo requer o otimismo da vontade, a disposição da política.
Uma política capaz de unir as multidões, essa classe trabalhadora dispersa, uberizada, os homens e mulheres do campo, nossa juventude, sempre berço de esperança, tentar dialogar com todos, buscar no seu dia a dia os sinais de novos caminhos, reconhecer nossas poucas certezas, aprender novamente como mergulhar na caminhada de nossa gente.
Fizemos pouco isso, o trabalho político-cultural, a educação no sentido paulofreireano, gramsciano, quando governamos e, sei, fizemos transformações extraordinárias nas condições materiais de existência do povo brasileiro.
Era preciso fazer mais, chegar ao coração, às mentes das trabalhadoras e dos trabalhadores. Não fizemos isso, ou o fizemos de modo notoriamente insuficiente. É hora de mergulhar de novo. Compreender outra vez: são as classes trabalhadoras as únicas capazes de produzir mudanças na história. A esquerda não existe sem elas. Temos de voltar a caminhar ao lado delas. Acompanhar o seu ritmo. Nada de querer colocar o carro adiante dos bois. Sem o nosso povo não há mudanças.
Referencias bibliográficas
CHAUI, Marilena. Contra a Servidão Voluntária. Belo Horizonte : Autêntica Editora; São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2013, 205 p.
GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro : Record, 2011,951 p.
SILVEIRA, Renato da. O Candomblé da Barroquinha: Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto. Salvador : Edições Maianga, 2006, 647 p.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros