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Era um homem da Universidade, pensava nela como instrumento do saber crítico, sempre defendendo a ideia de um ensino capaz de estimular o pensamento crítico nos estudantes

Luís Henrique Dias Tavares notabilizou-se como historiador. Como professor, intelectual respeitado. O mais notório estudioso da Revolução dos Alfaiates. Iniciou sua trajetória como jornalista, no jornal O Momento, do PCB, em 1945, encerrando essa fase em 1952, quando mergulha na História. Antes disso, fez as indispensáveis aproximações com o PCB. E a figura central para tanto, Heron de Alencar.

Já ensaiara incursões pelo jornalismo, mal completados os 16 anos, quando participa do Parlapatão, secundarista no Ginásio Clemente Caldas, no município de Nazaré das Farinhas, a 216 quilômetros de Salvador. Jornalzinho de iniciativa dele e de alguns colegas. O primeiro texto de ficção. Logo chegado à capital para prosseguir os estudos, é convidado a participar do Teatro dos Estudantes da Bahia (TEB), liderado por Heron de Alencar.

Nas pesquisas em torno de Luís Henrique Dias Tavares, a quem sucedi na Academia de Letras da Bahia, em março deste ano, encontrei referências do apreço enorme dele por Heron de Alencar, seu mentor de primeiras leituras marxistas. No texto da historiadora Consuelo Novais Sampaio, O mestre Luís Henrique. publicado como posfácio de livro dele, Nas margens, no leito seco.

Na entrevista concedida pelo professor à também professora, Sônia Serra, em 1984, empenhada nas pesquisas para dissertação, concluída em 1987: O Momento: História de um Jornal Militante, na Universidade Federal da Bahia, área de Ciências Sociais.

Por gentileza da autora, deparei, também, com o livro de Carla Patrícia Santana – Perfil de um Intelectual Brasileiro Exilado: Heron de Alencar, 1921-1972 –, biografia política, sentimental e discursos literários”. Nele, além da preocupação com a produção literária de Alencar, são encontrados elementos densos sobre a trajetória política dele, inclusive momentos de encontro dos dois, Alencar e Luís Henrique Dias Tavares. 

O primeiro encontro de Luís Henrique e Heron de Alencar deu-se no final de 1942, início de 1943. Um, com 17 anos, recém-chegado do interior. Outro, estudante de Medicina, 21 anos, já respeitado militante comunista, vinculado ao PCB, a impressionar o secundarista com enorme sede de conhecimento, estimulada na seleta biblioteca do tio Paulo Dias Tavares, acostumado a frequentar.

Luís Henrique, na entrevista a Sônia Serra, explicava: o grupo de teatro, constituía-se numa das frentes de luta antifascista. Preocupava-se em levar ao palco peças de alto valor do teatro mundial. Cita uma delas: Casa de Bonecas, de Ibsen. De modo acentuado, dava ênfase a peças de forte conteúdo político-social, contra o nazifascismo, em que era desenvolvida a crítica da quinta-coluna, daqueles dispostos a contribuir com o inimigo, e contra o Estado Novo. As peças correram trecho, na Bahia e em Sergipe. Constituíam aquilo que os comunistas chamavam de agitação e propaganda, nesse caso pelos caminhos da cultura.

Para uma iniciação, o novato Luís Henrique, ao ser convidado por Heron de Alencar para integrar o grupo de teatro, encontrou não apenas um palco, a lhe permitir avançar na demonstração de habilidades de interpretação artística, mas um mestre. Em sentido muito amplo. Mestre de formação marxista. A chegada desse Deus ex machina abriu-lhe horizontes insuspeitados. Outra leitura do mundo. Consuelo Novais Sampaio arrisca: Heron de Alencar era um mentor inigualável. Um ser excepcional, a quem o mestre Luís Henrique definia como “pessoa de personalidade extraordinária, presença muito grande, carismático, exercia enorme liderança”.

Em pleno Estado Novo, sob a tempestade da Segunda Guerra Mundial, Luís Henrique, orientado por Alencar, mergulhou no ano de 1943 em inúmeras leituras marxistas, à procura de respostas para os dramas do mundo, especialmente para o drama político e social brasileiro. Com tais leituras, fincou os alicerces teóricos, o instrumental metodológico capazes de torná-lo um grande intelectual, além de ter permitido a entrada dele no PCB.

E quem era esse mestre, tão iluminado, tão reverenciado?

Arrisco: ao longo da vida, constituiu-se num autêntico intelectual orgânico, pensamento e ação voltados à transformação do mundo, à Antônio Gramsci. Foi um homem de partido principalmente em sua fase inicial, entre os anos 40 e início dos 50, naquilo que foi possível chegar em minhas pesquisas. Ou, quem sabe, tenha havido alguma negociação entre o PCB e ele para a caminhada seguinte, muito rica.  Asas para voar – desejava tê-las sempre livres, sem, no entanto, abandonar suas convicções comunistas.  Nunca deixou de ser homem de esquerda, balizado por sua densa formação teórica de extração marxista. Amplo senso, jamais deixou de ser homem de partido, amplo senso.

Voou muito, em diversas direções. Não era de estacionar por muito tempo em nenhum lugar. Como se o mundo cobrasse a presença dele em projetos variados, cobrança sempre atendida, projetos executados. Não foi seduzido pela Medicina, não obstante o curso concluído. O mundo, mais amplo. Envolvia a literatura, as artes, a cultura, a universidade, a relação com movimentos sociais. Sempre manejando o pensamento crítico, e naturalmente avesso ao autoritarismo.

Difícil defini-lo. Lidou com jornalismo, literatura, educação, cultura, e foi um criador de universidades, no Brasil e fora. Era do mundo, mas sobretudo do Brasil, dedicação permanente ao país onde nasceu. Cultivava a liberdade. Esse perfil o tornou odiado pela ditadura nascida em 1964.

Nasceu no Crato, 8 novembro 1921. Cedo, e já na Bahia, firma-se como liderança estudantil, vinculado ao PCB. Em 1941, ingressa na Faculdade de Medicina da Bahia. Participa como delegado do 7º Congresso da UNE. Em 1946, diploma de médico nas mãos. Foi nessa década, com esse mestre, o aprendizado essencial de Luís Henrique Dias Tavares.

Medicina de lado, o jornalismo o toma. Redator de A Tarde em 1947, logo o principal responsável pela área de cultura do jornal, assinando também a coluna Caleidoscópio, de crítica literária. Polivalente, em 1948, assume a Diretoria de Museus da Secretaria de Educação no governo Octávio Mangabeira. Ousado, inquieto, apresenta ao secretário Anísio Teixeira um Plano de Implantação de Museus e Bibliotecas Públicas.

Um dos líderes na Bahia da campanha “O Petróleo é Nosso”, a redundar na Petrobras, movimentação onde o PCB teve papel hegemônico. Início dos anos 1950, contratado pela Universidade Federal da Bahia. Dá aulas de Técnica de Jornalismo no primeiro curso de Jornalismo do Estado, e também de Literatura Comparada, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Eleito em 1951 primeiro presidente do Sindicato dos Jornalistas da Bahia (Sinjorba), participa como delegado da entidade no 4º Congresso Nacional de Jornalistas, organizado pela Federação Nacional dos Jornalistas. É eleito para uma diretoria da Associação Bahiana de Imprensa. Logo depois nomeado assessor especial do reitor Edgar Santos.

Aprovado em concurso para Livre Docência na UFBA, faz doutorado, torna-se doutor em Letras Neolatinas pela Faculdade de Filosofia e Letras da UFBA. Em 1954, obtém bolsa do CNPq para fazer pós-graduação na Sorbonne, em Paris, onde ensina Literatura Brasileira, e da qual torna-se diretor de Pesquisas do Instituto Luso-Brasileiro. Uma proveitosa experiência, a durar quase sete anos.

Da experiência em Paris, trouxe a ideia de reestruturar a Universidade Federal da Bahia, propondo a unificação de cursos afins em Institutos, novidade à época. Reassume no início dos anos 1960, na volta à Bahia, a docência, ensinando em diferentes cursos – transitou do jornalismo às belas artes, passando por Letras.

Sugere a criação de uma editora na UFBA, hoje um sucesso. Um dos fundadores da Associação Baiana de Escritores. Em 1961, apresentador do programa Roda de Debates, na recém-inaugurada TV Itapoan, transmitido também pela Rádio Sociedade da Bahia, voltado a temas culturais e políticos. Não é difícil perceber sua natureza polivalente.

Foi dele a aula inaugural de abertura do ano letivo da UFBA, 1º de março de 1961. Universidade, região e alienação cultural, o título. Trata da experiência na Sorbonne e expõe suas preocupações e propostas para a Universidade brasileira. Mereceu artigo de Luís Henrique Dias Tavares, dia seguinte, no Jornal da Bahia. Sob o título “Uma lição de mestre”, diz esteve Alencar, com aquela aula, a inaugurar uma nova Universidade, trazendo a marca de um espírito novo.

Não, diz Luís Henrique, não mais a Universidade de velhas Escolas e velhos métodos, de aulas muito bem ditadas, cheia de professores quase príncipes. Uma Universidade, aí sim, de novos institutos, de novos centros de estudos e de pesquisas, de novos seminários e conferências e grupos de discussão.

Podem dizer, vai discorrendo o ex-discípulo, aula inspirada em lições aprendidas na Sorbonne. Meia verdade, explica: Heron de Alencar falou como um brasileiro de sua geração, intelectual brasileiro de primeira qualidade, professor universitário amante de sua Universidade, foi “como homem do seu tempo e da nossa realidade, verdadeiro e autêntico, que o professor Heron disse sua lição de mestre.” Tributo do antigo aluno ao mestre.

Nesse retorno, Heron de Alencar trabalha também no Jornal da Bahia, inicialmente como redator, depois, por um tempo curto, redator-chefe. João Falcão relata: a primeira reunião sobre o jornal, antes da compra da rotativa, foi na casa de Alencar, na Pituba, reunindo o anfitrião, Falcão, Zittelmann de Oliva, Milton Cayres de Brito e Virgílio da Motta Leal Júnior. “Ao final, ficou decidida a compra da máquina e do título do Jornal da Bahia, que estava registrado no nome do deputado Luiz Viana Filho.”

Não esquentou lugar. Em 1962, convidado por Darcy Ribeiro, integra comissão encarregada de elaborar projeto e implantação da Universidade de Brasília (UNB), na qual passa a coordenar a pós-graduação e a ensinar Literatura Brasileira e Cultura Brasileira. Nomeado como um dos integrantes do Conselho Federal de Cultura, recusa convite do primo Miguel Arraes para ser secretário de Educação de Pernambuco. Aceita ser assessor especial do governador, responsável pelas relações com os movimentos sindicais e sociais.

Golpe de 1964, um dos honrados na lista de cassados. Consegue asilo na embaixada do México no Rio de Janeiro, onde permanece até 1º de junho. Voa então para o exílio. Organiza a ação dos exilados para sobreviver. É um dos fundadores da Organização dos Sindicalistas Brasileiros Exilados (OSBE). Torna-se um dos redatores do Correio Brasiliense, editado, voltado para a organização dos desterrados no México.

Ensina Português e Literatura em Língua Portuguesa, escreve verbetes sobre Literatura e Educação para dicionários e enciclopédias. Procura ajudar as pessoas a arranjar empregos. Não para. Em setembro, ainda em 1964, delegado convidado à Assembleia Mundial de Educação, apresenta o texto A Universidade Brasileira e a Universidade de Brasília. Pronuncia conferência na Universidade Autônoma do México sobre Os intelectuais no processo de grandes massas no Brasil.

Em 1965, passa três meses em Cuba. Escreve artigo Sobre el gorilazo en Brasil, publicado no jornal Hoy, na Ilha, e outro – Perspectivas políticas – no qual analisa a correlação de forças, as forças potencialmente revolucionárias no Brasil, incluindo o PCB, indicando estratégias de resistência. O militante não descansava.   Passa pela Tchecoslováquia antes de se instalar em Paris – dá algumas aulas e participa de encontros sobre Educação e Cultura e de um programa radiofônico dirigido por Guido Araújo, mais tarde um dos mais notórios cineastas baianos.

Oscar Niemeyer, de quem era amigo-irmão, o convida para elaborar o projeto da Universidade de Constantine, na Argélia. Sempre com as participações de Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Euvaldo Matos e Ubirajara Brito, projeta, ainda, a Universidade Científica de Argel e a Universidade de Ciências Humanas. Torna-se consultor do governo argelino para Educação. De meu conhecimento, só para não deixar passar, Luiz Hildebrando Pereira da Silva foi quadro do PCB a vida inteira, assim como Niemeyer. Os mais frequentes companheiros de Alencar eram do Partidão.

Era, entre tantos atributos, um homem da Universidade – penso já ter ficado claro. Nunca deixou de pensar nela como instrumento do saber. Do saber crítico, sempre defendendo a ideia de um ensino capaz de estimular o pensamento crítico nos estudantes, capaz de levá-los a um olhar reflexivo sobre os acontecimentos, sobre o movimento da sociedade. E pensava a Universidade de uma dupla perspectiva: nacional e internacional. Permanente intercâmbio entre os saberes construídos em cada país e desenvolvimento de singularidades em cada nação, chegando, no caso brasileiro, a falar em regionalização desses saberes, e propôs isso quando contribuindo com a Universidade Federal da Bahia.

No exílio, pensou a criação de uma instituição universitária latino-americana, outra ousadia, tentativa de juntar saberes no continente, unindo, nesse caso, primeiramente, professores universitários argentinos e brasileiros. Reuniu o que de melhor podia para discutir a proposta: seu camarada Oscar Niemeyer, Celso Furtado. Waldir Pires, Leite Lopes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, e Rolando Garcia, vice-reitor da Universidade de Buenos Aires. As dificuldades da vida no exílio e a ditadura no Brasil frustraram a iniciativa. 

Em 1971, é surpreendido por um câncer no cérebro. A ditadura permite o retorno dele ao Brasil. Chega em cadeira de rodas, em dezembro daquele ano. Internado na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro, sob os cuidados do neurologista Paulo Niemeyer. Morre no dia 1º de janeiro de 1972, aos 50 anos recém-completados.

Como Neruda, podia ter dito: confesso que vivi. O professor Luís Henrique Dias Tavares, ao vê-lo partir, sentiu a dor da perda de um mestre inesquecível. Felizmente um mestre sábio o suficiente para repartir o saber com inúmeros alunos e inúmeros países, sementes espalhadas pelo mundo.

Ao vê-lo partir, ao vê-lo voltar ao Brasil para morrer, pensou na força, na dignidade de um mestre, companheiro de tantas jornadas. Depois do Teatro dos Estudantes da Bahia, vai encontrá-lo novamente, como redator-chefe de O Povo, de Salvador, fundado por ele em 1948, de breve existência, atividades encerradas em 1949. O jornal nasceu no curso da campanha “O Petróleo é Nosso”, de que Alencar participou com destaque. No grupo fundador, estavam Acácio Ferreira, Darwin Brandão, Eloiwaldo Chagas de Oliveira, Graça Leite, Silvio Valente e Inácio Loyola, além do próprio Luís Henrique Dias Tavares.

Vão reencontrar-se, pela terceira vez, na revista Seiva. Nascida em 1938, graças à impetuosidade de João Falcão, e orientação do PCB, fechada em 1943 pela ferocidade do Estado Novo, volta a circular em 1950, agora sob a direção dele, Luís Henrique Dias Tavares. Um time de primeira, a lembrar alguns: Walter da Silveira, Ariovaldo Matos, José Gorender, Jorge Amado, Acácio Ferreira, Jacob Gorender, Graciliano Ramos, e ele, Heron de Alencar. Circulou até 1952.

Luís Henrique jamais se esquecerá dele. Elevado à condição de mestre, respeitado como historiador, reconhecido como pesquisador, cortejado sempre como excelente orientador, o historiador nunca deixou de reconhecer em Alencar o primeiro mestre, a fazê-lo mergulhar nas asas do conhecimento, a lhe fornecer indispensáveis ferramentas para sua caminhada na História.

Referências

FALCÃO, João. Não Deixe Esta Chama se Apagar. Rio de Janeiro: Revan, 2006, 252 p.

RAMOS, Jorge. Quem Foi Heron de Alencar, o “irmão” de Oscar Niemeyer. Salvador, 05 nov., 2021 Facebook: Jorginho Ramos. Disponível em: . Acesso em: 06 nov. 2021.

SAMPAIO, Consuelo Novais. O mestre Luís Henrique: In Nas margens, no leito seco: posfácio de Luís Henrique Dias Tavares. Salvador: EDUFBA, p. 87-105. [2013].

SANTANA, Carla Patrícia. Perfil de Um Intelectual Brasileiro Exilado – Heron de Alencar, 1921-1972: biografia política e sentimental e discursos literários. Salvador: EDUNEB, 2014, 157 p.

TAVARES, Luís Henrique Dias. [Trajetória no jornal O Momento]. Entrevista concedida a Sônia Serra. Salvador, 30 ago.1984.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros