O processo decisório institucional no Brasil, desde antes da posse do governo Bolsonaro, tem sido conduzido pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal, em conformidade com a visão fiscalista do mercado financeiro, com duplo propósito: promover ajuste fiscal, para honrar compromissos com credores da dívida, e retirar o Estado da produção de bens e da prestação de serviços, para atender à demanda do setor privado pela prestação desses serviços ao Estado em bases lucrativas. Trata-se de um círculo vicioso no qual o governo se encontra a reboque do Congresso e do STF e ambos a reboque ou a serviço do mercado.
Quando analisamos as principais matérias votadas no Congresso no governo nos últimos cinco anos verificamos um completo alinhamento com essa lógica de ajuste e desmonte do Estado. O governo Michel Temer fez sua a pauta do mercado, formalizada por intermédio da chamada “Ponte para o Futuro”, e o governo Bolsonaro/Guedes, por meio do chamado “Plano Mais Brasil”, vem aprofundando essa agenda.
No governo Temer o Congresso aprovou e incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro a Emenda Constitucional do teto de gastos (EC 95/2016), a terceirização generalizada (Lei nº 13.429/2017) e a reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017). No governo Bolsonaro, por sua vez, foram aprovadas a reforma da Previdência (EC 103/2019), o congelamento de gastos com servidores (Lei Complementar nº 173/2020), a autonomia do Banco Central (Lei Complementar 179/2021), a privatização do setor de saneamento (Lei nº 14.026/2020), além da PEC emergencial (PEC 186/2020), que dá efetividade e amplia o escopo do Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional 95/2016, ao determinar o congelamento do gasto público sempre que a relação entre despesa primária obrigatória e despesa primária geral atingir 95%.
Nota-se que desde que foi inaugurada a nova sessão legislativa e a eleição e posse dos novos presidentes da Câmara e do Senador Federal, respectivamente deputado Arthur Lira (PP/AL) e senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), em fevereiro de 2021, em plena pandemia, as duas principais proposições aprovadas no Congresso Nacional são de interesse do mercado: a autonomia do Banco Central e a PEC Emergencial. Parece evidente que o Congresso tem cedido às chantagens e pressões do mercado de capitais, embora utilize como argumento a necessidade de sustentabilidade da dívida e do Auxílio Emergencial, além do combate à pandemia do coronavírus.
No caso do STF, as decisões tomadas têm sido no sentido de reconhecer a flexibilização de direitos trabalhistas, as medidas do ajuste fiscal, que só ataca o lado da despesa, e de chancelar o processo de privatização sem necessidade de aprovação do Congresso, em sintonia com as agendas governamentais e do mercado.
Por enquanto ainda não conseguiram desmontar as políticas púbicas, organizadas em sistemas nacionais, como a de educação, saúde, assistência social e recursos hídricos, mas após concluírem a aprovação da reforma administrativa (PEC 32/2020), da privatização da Eletrobras (MPV 1.031/2021) e dos Correios (PL 591/2021) e propuserem novamente a carteira verde e amarela e a capitalização da Previdência, as atenções se voltarão para aquelas políticas públicas, que apresentam dupla vantagem para o governo e para o mercado, porque, de um lado, eliminam instâncias colegiadas que deliberam sobre elas, e, de outro, possibilitam fazer grandes economias com corte de gastos, em função da escola que elas expressam/representam.
O que é preocupante é que essa política suicida de ajuste fiscal em cima de despesas essenciais à vida vem sendo praticada, inclusive em momento de grande recessão e crise sanitária, como a que vivemos no momento, e sob um fundamento teórico – o da sustentabilidade da dívida – que o resto do mundo já abandonou: a ideia de que existe relação entre PIB e dívida. A lógica é que o aumento da dívida em relação ao PIB leva ao aumento de inflação e da taxa de juros, mas isso não encontra eco na realidade, até porque o PIB é fluxo e a dívida é estoque, não cabendo relação entre ambos. Além disso, se a tese do ajuste a qualquer custo e da relação dívida versus PIB fosse verdadeira, os Estados Unidos, onde a dívida supera o PIB, e o Japão, onde a dívida pública supera duas vezes o PIB, a inflação e a taxa de juros seriam muito altas e não são. Estão próximas de zero.
Essa abordagem, ademais, se dá de forma a manipular conceitos: desde o governo Temer, vem sendo apontado o crescimento da dívida bruta em relação ao PIB, desconsiderando que o que importa é a dívida líquida. Como aponta o doutor em Economia pela Unicamp Petrônio Portella Filho, ex-consultor do Senado, a dívida líquida do governo federal e do Banco Central (DLF), que diminuiu nos governos Lula e Dilma de 37,7% do PIB (2002) para 22,2% do PIB (2015), em um contexto em que os gastos públicos estavam orientados à melhoria da distribuição de renda, geração de empregos e desenvolvimento, desde o golpe que entregou o poder a Michel Temer até final de 2018 aumentou 110%. No mesmo período, a relação DLF/PIB passou para 40,5% do PIB. E, em 2019, chegou a 42% do PIB, sob a orientação fiscalista e neoliberal de Paulo Guedes. Com a pandemia Covid-19, e mesmo com o desmonte do Estado em curso, aumentou para 48,2% do PIB. Assim, a dívida pública federal, que estava em R$ 1,3 trilhões em 2015, subiu para R$ 3,7 trilhões em 2020, com aumento nominal de 185%.
Mas essa dívida líquida do governo federal e do BC representa a dívida bruta total, menos os créditos e ativos financeiros, entre eles as reservas internacionais, que os governos Lula e Dilma ampliaram expressivamente. Assim, o critério da dívida bruta, que desconsidera esses créditos e ativos, não revela a real situação da economia – mas o número é mais conveniente para quem quer defender o desmonte das políticas públicas, sem considerar os impactos que isso terá sobre a população. Segundo a Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, a dívida bruta atingiu 89,6% do PIB em 2020, e poderá atingir 100% do PIB até 2028. Mesmo com medidas de ajuste fiscal e crescimento em torno de 3,5% ao ano (cenário otimista) a dívida bruta continuaria em 80% do PIB até 2028, alimentando o discurso privatista e fiscalista.
É urgente que os intelectuais, os parlamentares, os dirigentes partidários e as lideranças dos movimentos sociais, além dos jornalistas e formadores de opinião, se apropriem desse conhecimento e combatam tanto a investida em bases neoliberais, em desuso no resto do mundo, quanto à narrativa que advoga o equilíbrio das contas públicas, com contenção de gastos sociais, como condição para o controle da inflação e das taxas de juros, além da retomado do crescimento da economia. O economista André Lara Resende, com base na Teoria Monetária Moderna (TMM), desmente essa relação de causalidade entre déficit público e inflação e juros, defendendo o endividamento público para investimento social e em infraestrutura e para combater o desemprego, especialmente em momento de crise e recessão, como agora.
Os desafios postos, portanto, consistem em impedir que o governo Bolsonaro, a serviço do mercado, desmonte o Estado e os sistemas de políticas públicas, sob pena de derrocada da economia, retirada dos mais pobres do orçamento e ampliação da miséria e da desigualdade. Para tanto, além de programas de formação cívica e política, são indispensáveis: a) a organização de frente ampla para denunciar essa operação desmonte em curso; b) a unidade de ação dos democratas e humanistas contra essa agenda suicida do governo; c) o combate a essa falsa narrativa do mercado em defesa da chamada sustentabilidade da dívida; e d) a preparação de um projeto de país que considere o interesse nacional e as necessidades do povo brasileiro por dignidade, trabalho e respeito por parte dos governantes.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap, e sócio-diretor das empresas Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governo e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas