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O jornalismo parte dos fatos, está ancorado neles. A literatura, na imaginação, não obstante nunca fuja do ofertado pela vida. É possível e real o parentesco

Chego a Academia de Letras da Bahia porque sou jornalista. Digo isso por verdadeiro.

E como homenagem aos meus colegas de profissão, a lutar sempre pela liberdade de expressão, pelo direito do povo de ser informado, pelo exercício cotidiano na busca incansável da verdade. Duro exercício, tanto pelas dificuldades vindas do Estado quanto das corporações monopolistas de comunicação, cujos interesses estão invariavelmente vinculados às classes dominantes, distantes da vida das maiorias espoliadas, os mais pobres, contingente a crescer assustadoramente nos anos mais recentes.

O jornalismo me fez escritor.

Ali pelo final dos anos 1960, era apaixonado por futebol. Pelo Santos Futebol Clube mais especificamente. Como resistir ao time de Pelé? Pretendi então ser jornalista esportivo. Acompanhava os jogos pelo rádio, admirava narradores, repórteres de campo, comentaristas. Ouvir os jogos pelo rádio é experiência única, os mais velhos sabem. Acreditava-me bom redator, dera aulas de redação a colegas no ginásio. Procurei a sucursal do Jornal do Brasil, queria um estágio. Nada. Recebido com indiferença, quase desprezo. Não, não nasceria ali a minha vida de jornalista.

A revolução, amante implacável, me arrastou, me levou à luta contra a ditadura e ali pelo final de 1968 já era clandestino. Dois anos depois, preso aqui na Bahia, quatro anos confinado na Penitenciária “Lemos Brito”. Na prisão, fui o redator do Jornal de Notícias, publicação em meia folha de papel ofício escrita à mão, notícias de não mais de três linhas tiradas de meia em meia hora de um radinho de pilha distribuídas mais ou menos ali pelas 19 horas entre os companheiros, em exemplar único, devidamente queimado na última cela. Minha primeira experiência real como jornalista.

Recém-saído da prisão, a Tribuna da Bahia me acolheu, corajosa e solidária. Em outubro de 1974, iniciava ali minha trajetória profissional. Tive vários mestres no jornalismo. Homenageio quatro deles. Na Tribuna da Bahia, José Barreto de Jesus e Gustavo Falcón. No Jornal da Bahia, Césio Oliveira. No Estadão, Carlos Navarro Filho. Cada um, de seu jeito, me deu régua e compasso. A gente sabe a quem chama de mestre. A eles, reverência, sempre.

E como se chega ao escritor?

É uma construção. Nem sempre percebida por quem a vive. Entrevistei um ex-colega de prisão, Olderico Campos Barreto, ali pelo ano de 1978. Levei o conteúdo para Mariluce Moura, respeitada jornalista e amiga, viúva de Gildo Macedo Lacerda, assassinado pela ditadura, e a quem ela nunca pôde sepultar. Pensava em publicar a entrevista em algum veículo. Mariluce leu atentamente a entrevista, e me desaconselhou. Propôs: faça um livro sobre Lamarca. Segui o conselho. E surgiu Lamarca, o Capitão da Guerrilha, escrito por mim e por Oldack Miranda, hoje na 17ª edição, um best-seller.

De lá para cá, foram quinze livros, o último deles, O Cão Morde a Noite, autobiografia a cobrir da minha infância à saída de prisão, passando por ditadura e pela minha própria tortura. Há três livros sobre a imprensa e o restante são biografias ou relatos sobre o período da ditadura no Brasil e na Bahia de modo especial.

Uma pergunta paira sobre essa produção – qual o parentesco entre ela, pautada numa herança jornalística, ou, se quiserem, em técnicas jornalísticas, e a literatura? Pergunta a pairar, quem sabe, na cabeça das ilustres companheiras e companheiros dessa academia, e a me perturbar, creiam.

Não deixo de refletir sobre isso. Nunca me rendi à ideia da supremacia absoluta dos fatos, tão cara ao jornalismo. Por mais sejam os fatos a matéria prima essencial da atividade jornalística, eles jamais deixam de estar submetidos a uma interpretação.

Essa interpretação não pode ser encarada apenas como um atributo individual. Ela nas redações nasce se desenvolve a partir de cadeias de poder, decorrente do rumo editorial de cada veículo, e os jornalistas são levados a seguir tal rumo, além, é claro, de incorporarem valores sociais bem mais amplos advindos de instituições como a escola, a família, as religiões, do Estado – da ideologia dominante, enfim.

Não se quer, com isso, eliminar os momentos de iluminação de um repórter, a escapar do círculo de giz do pensamento hegemônico, socialmente constituído. Os fatos, para resumir, são, assim, levados ao distinto público de acordo com uma interpretação.

Quando olho para trás, observo: enquanto sobrevivia da atividade assalariada do jornalismo, e não posso deixar de ser grato a isso, corria para as margens, de modo a produzir uma obra a ser caracterizada como simbiose entre jornalismo e literatura. Não quero ser pretensioso, embora possa parecer. Ressalto, não para me defender: muitos dos meus colegas, extraordinários jornalistas, fizeram e fazem isso: literatura. Valendo-se do jornalismo.

Quando penso nas biografias, nos inúmeros relatos sobre a repressão no Brasil, nos tantos livros sobre o período, penso em personagens, a propiciar um dos encontros entre a literatura e o jornalismo. Vou atrás dos fatos, incontornáveis, embora nunca congelados, e passo, a partir deles, a esculpir os meus personagens. São construídos por mim, a partir de meus referenciais, e passam muitas vezes a me guiar, e isso não quer dizer que fuja à realidade, sempre diversa, múltipla, colorida.

Os diálogos vão aparecendo, sendo construídos, nem sempre como ocorreram, porque impossível muitas vezes recuperá-los como tal, correspondendo ao acontecido, não obstante. Tudo checado, perguntas e mais perguntas, pesquisa e mais pesquisa.

Como qualquer romancista, durmo e acordo pensando em meus personagens. Sonho com eles. Sou atormentado por eles. Tomado por eles. E o texto deve abrigá-los, reconhecê-los. Choram, se emocionam, sofrem, são vítimas de violências e eu devo traduzir isso em suas humanidades, a partir dos fatos, meu chão.

O texto escapa ao chão, voa. Sem perder o chão de vista.

Estou refletindo sobre isso, sobre meu trabalho, pela primeira vez, diante dessa academia. Ainda vivo um processo relativamente doloroso de libertação dos grilhões do fato, tal e qual o jornalismo me educou. Penso nisso e acho curioso. Tão essenciais os fatos, se não nos acautelarmos transformam-se em grilhões a oprimirem o texto, a inibir a criatividade.

O jornalismo me deu a base, a insistência na checagem das coisas, para não partir de dados falsos. A partir dessa base, então, voar, criar, admitir a subjetividade dos personagens, desenvolvê-la. Não como romance, mas a partir da vida deles, delas, envolver o leitor na teia da existência humana, tão diversa, tão rica, exuberante. Estrutura e superestrutura, a antiga metáfora a me orientar.

Dou de barato possam ter razões os argumentos contrários a qualquer parentesco rigoroso entre jornalismo e literatura. Ter razões não significa concordar com eles, mas dizer de sua coerência interna. Afinal, o jornalismo parte dos fatos, está ancorado neles, já se disse. A literatura, na imaginação, não obstante nunca fuja do ofertado pela vida. Insisto, no entanto: é possível e real o parentesco entre jornalismo e literatura.

Tive a sorte de só trabalhar personagens da história alinhados, próximos das ideias defendidas por mim. Sorte, não: fiz escolhas. Personagens fortes da história, capazes de tantas atrocidades, esperam ou tiveram biografias. Justo, tivessem ou venham a ter. Minhas escolhas são conhecidas.

Talvez tenha me sentido tentado a voos teóricos em torno da relação entre o jornalismo e a literatura por conta das lições de mestres da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, na qual fiz a graduação, o mestrado e o doutorado. Foram vários. Destaco um, orientador de meus mestrado e doutorado: Albino Canelas Rubim, exemplo de professor, intelectual e homem público. A ele serei sempre grato, e ao destacá-lo, honro os demais.

De mim, creio bastar. Dizer: os outros sabem muito mais de nós. Quando nos avaliamos, em geral fracassamos. Por isso, me contentaria se me considerassem o que verdadeiramente sou: jornalista. Simples assim. Dei de escrever sobre as dores do nosso país, da ditadura e seus horrores, de nossa ancestralidade escravocrata, das heranças marcadas pela brutal desigualdade, pelo racismo, a nos afrontarem nos dias de hoje de modo obsceno. Essas buscas marcam meus escritos.

Este texto é parte do meu discurso de posse como titular da Cadeira Número Um da Academia de Letras da Bahia, reflexão sobre a complexa relação entre jornalismo e literatura, fato e imaginação.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vols.), O Cão Morde a Noite, entre outros