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Há duas maneiras de olhar Linha de Passe. A primeira consiste em examinar o filme em si. A segunda, em tentar se debruçar sobre sua repercussão

Há pelo menos duas maneiras de olhar Linha de Passe. A primeira, e clássica, consiste em examinar o filme em si. A segunda, em tentar se debruçar sobre sua repercussão. O longa de Walter Salles e Daniela Thomas assumiu nas páginas de revistas e jornais uma importância maior do que deveria, menos por suas qualidades ou defeitos intrínsecos e mais por sido apropriado, à revelia bem entendido, por um certo acirramento da discussão política.

Uma sinopse simplória poderia resumir assim o filme: em algum lugar da periferia de São Paulo uma empregada doméstica vive com seus quatro filhos e espera o quinto. O mais velho, Dênis, é motoboy e também tem um filho que não mora com ele. Dinho, o segundo, está empregado como frentista no posto de gasolina e freqüenta o culto evangélico da vizinhança. Dario, jogador de futebol habilidoso, tenta uma vaga no juvenil de um time grande. Reinaldo, ainda garoto de escola, procura o pai que não conhece nas garagens de ônibus. Não há propriamente uma grande história ali, mas a movimentação desses personagens no espaço exíguo de uma casa modesta e nos espaços abertos da cidade.

É o que deve ter bastado para que, automaticamente, se enxergasse no filme uma intenção sociológica antes de tudo, como se a simples menção da palavra periferia implicasse um recorte que privilegiasse tão-somente a descrição de um modo de vida específico, tendendo para a denúncia de sua precariedade.

Se é verdade que em Linha de Passe a pobreza delimita as possibilidades dos personagens, a isso não se segue que o filme tente simplesmente documentá-la. O que há de semelhança com o documentário vai por conta da não-familiaridade que o espectador de cinema tem com os cenários, com os rostos, com as falas e com os gestos desse outro que mora longe, vive com um salário inimaginável e está submetido a uma aspereza que se supõe, mas não se conhece de fato.

Mas também é verdade que em Linha de Passe há outras questões em jogo, tão ou mais centrais que as que depreendem de sua moldura sociológica. Esses cinco personagens, cuja caracterização primeira pode até parecer típica, estão às voltas com impasses existenciais para além de sua condição social. São impasses que têm a ver com suas escolhas pessoais e íntimas.

Cleuza, a mãe, vive numa expectativa muda e angustiada do filho que vai nascer. O filho mais velho, charmoso e ávido por atenção, busca amor onde não há e rejeita aquele que está sob seu nariz. O jogador de futebol tem certeza e orgulho de sua habilidade individual, mas não sabe – ou se recusa, não sabemos – a jogar para o time. O rapaz direito começa a enxergar os limites – e, talvez, a ineficiência – da religiosidade como ponto de fuga. E há o menino, para quem a revolta ainda faz sentido e tem graça.

Esses indivíduos se encontram num tecido familiar solidário, mas cheios de conflitos e incompreensões. Todas as tensões se concretizam numa espécie de dança pela ocupação da casa, cujos espaços de privacidade e de recolhimento são disputados o tempo todo.

O deslocamento para o âmbito íntimo, existencial, passou completamente despercebido para muitos detratores do filme, que insistiram em enxergar em tudo isso um esquema moralizante, onde as ações dos personagens estariam determinadas não por suas escolhas individuais, mas pelo “sistema”. Por essa cartilha, a representação do “pobre” é sempre tão exterior, tão diferente, que exclui a possibilidade de que se olhe para o seu interior.

E é lá, desse interior, que vêm as cenas mais belas – pois é, antes de tudo, um filme de uma beleza triste – de Linha de Passe. O garoto Reinaldo dirigindo um ônibus imaginário; Cleuza sentindo as primeiras contrações; o Dinho feroz que emerge depois do batismo – expressões, não de um constructo sociológico destinado a defender essa ou aquela tese, mas de emoções simplesmente humanas.

 

Bia Abramo é jornalista