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Lula teve de vir a campo, e nisso tem sido insistente, para dizer o quanto é valiosa para ele a ideia de continuar com o povo no orçamento.

 

Comemorar aniversário.

Celebrar 79 anos, presidente Lula.

E refletir sobre os desafios, enormes.

Celebrar e simultaneamente refletir.

Ninguém é presidente da República impunemente.

Os destinos do país, nas mãos.

Somos da mesma geração.

Somos Dirceu, Genoíno, Rui Falcão.

Lembro destes, deixando de lado tantos outros, e pensando fazer dos três uma síntese para homenagear também aos demais.

Lembro pela idade e pela amizade e irmandade de ideais a me unir a cada um deles, muito fortemente.

Lembro deles e do presidente Lula

Comemorei 78 anos em fevereiro.

Estamos todos no outono.

Dispostos todos a lutar pela primavera.

Todos nós temos um orgulho imenso em ter Lula como companheiro e como presidente da República.

É nome já fincado em nossa história.

Entre os maiores, senão o maior nome de toda nossa história até hoje.

Pelo impacto da vida dele sobre a existência desse país e de toda a gente brasileira, especialmente da classe trabalhadora, aqui compreendida de modo muito amplo, com toda diversidade, enfrentando impressionantes transformações.

É só olhar a áspera caminhada.

Simultaneamente áspera e bela.

Caminhada vidas secas.

Basta ela para o orgulho crescer.

Vindo do Nordeste Graciliano.

Da Triste Partida:

“Setembro passou, oitubro e novembro, já tamo em dezembro, meu Deus qué é de nóis, meu Deus, meu Deus...”

Da viagem para o Sul.

De quem experimentou miséria, fome.

De quem ascendeu à classe operária.

Nunca chegou ao paraíso.

Mas pisar os pés no mundo dos metalúrgicos significava ascensão, sim.

Presidência do sindicato.

 

Política como caminho

Lidera greves históricas, milhares e milhares de pessoas concentradas na Vila Euclides, deslumbradas com aquela liderança.

Preso por isso.

Recusou-se a se deixar aprisionar aos limites estreitos do economicismo, do corporativismo.

Compreendeu a necessidade da luta política.

Fundou o PT, e o partido significou a união daquela classe trabalhadora, das comunidades eclesiais de base e de tantos egressos das prisões da ditadura, todos comprometidos com o destino democrático e socialista do país.

Parlamentar, sentindo a dimensão da liderança conquistada, dá o salto e vai à luta para chegar à presidência da República, centro do poder, onde seria possível, com políticas públicas, melhorar a qualidade de vida do nosso povo.

A luta o levou a compreender isso.

Disputa uma, duas, três eleições.

Em todas, derrotado.

Sempre: levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima.

Na quarta tentativa, 2002, a vitória.

Dois governos.

Bem sucedidos.

Porque no rumo de construir políticas públicas destinadas a melhorar a qualidade de vida do nosso povo.

Com a ousadia de declarar guerra.

Guerra à fome.

Foi essa declaração de guerra a marca essencial dos dois governos: o primeiro passo, eliminar a fome, tragédia a infernizar a vida do povo brasileiro desde sempre.

Fez isso em meio a um cenário difícil.

Ali, desde o primeiro mandato, se iniciava a perseguição brutal a ele e ao partido.

Era o alvorecer, os primeiros passos da quadrilha organizada a levar o nome de Lava Jato, agora desmascarada.

Ainda não devidamente punida pelos estragos causados à nação e particularmente ao PT, a tantos dirigentes, e especialmente ao próprio presidente Lula, preso sem cometer qualquer crime.

Preso para evitar fosse ele, novamente, eleito presidente da República em 2018.

E foi, também, durante o segundo governo dele, a brutal crise do capitalismo mundial, com epicentro nos Estados Unidos.

Lula soube enfrentá-la como poucos.

O país cresceu e distribuiu renda.

E Lula ainda fez sucessora, Dilma Rousseff.

Esta se reelege.

Depois, o tsunami.

Golpe de 2016.

Prisão de Lula em 2018.

Eleição de Bolsonaro.

Quatro anos, e todo o significado daqueles tempos sombrios, trágicos.

Uma pandemia e setecentos mil mortos.

Mortandade, nessa dimensão, decorrente do aberto negacionismo daquele governo genocida.

Vitória, país volta a respirar

E Lula se elege em 2022.

O país voltava a respirar.

Não é pouca coisa: terceiro mandato presidencial de Lula.

É caso único em nossa história: três mandatos conquistados pelo voto.

No exercício da democracia.

Não tem igual na história do Brasil.

Muitos os desafios, enormes.

Muito o realizado até agora.

Recuperação das políticas públicas.

Saúde, educação, direitos humanos, tanta coisa.

Tanta obra.

Um esforço de reconstrução.

Até porque o presidente anterior, ele próprio, dissera, em alto e bom som: a principal tarefa dele, a destruição.

Dissera isso nos Estados Unidos, pátria da predileção dele, no início do governo, 2019.

Reconstruir, a tarefa dessa fase do governo.

Confesso, digo: comunicação do governo não faz justiça ao tanto já realizado.

Não conseguiu chegar aos tempos digitais, ao tempo dos algoritmos.

Trata-se de encontrar o caminho para isso, falando a verdade.

O governo só precisa da verdade, tanta coisa realizada.

Política externa

Lula volta a brilhar na política externa.

Teve coragem ao se colocar frontalmente contra o genocídio israelense, cometido na Faixa de Gaza, matando até agora mais de quarenta mil pessoas, maioria delas, mulheres e crianças, seguido agora por outro massacre, o do Líbano. Nas últimas horas, ataque ao Irã e à Síria.

Não vacilou em nenhum momento quanto a isso.

Condenaram-no porque teria falado em holocausto. Nunca falou. Tivesse falado, estaria certíssimo.

O massacre em Gaza é a revisitação do holocausto, trágico seja, porque levado à frente por um país cujo povo foi vítima das atrocidades do nazismo, atrocidades cometidas contra judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, tanta gente fora da concepção ariana.

Besteiras ditas pelo ministro José Múcio, da Defesa, num viés ideológico nitidamente favorável a Israel, não perturbaram as convicções de Lula.

Israel segue com o massacre, e Lula segue com a condenação enérgica a tal continuidade.

Desenvolveu as convicções, em todos os plenários mundiais, inclusive na ONU, em torno do problema da fome.

Tal combate constitui um mantra permanente do presidente. Resta ver se o mundo não fará, como tem feito, ouvidos de mercador.

Não cabe esquecer: no Ocidente, há uma impressionante hegemonia do capitalismo, com toda a voracidade dele, com a marca neoliberal dessa fase.

Está certo o presidente: insistir, mostrar o quanto é obsceno experimentar a fome numa impressionante escala num mundo de escandalosa concentração de renda e riqueza.

Lula culpou os governantes dos países pela fome, e não está errado.

Sim, mas antes de tudo, o culpado, é esse capitalismo das nuvens, esse neoliberalismo, essa acumulação incessante de dinheiro, capaz de produzir mais e mais miséria, mais e mais fome.

A peregrinação do presidente contra a fome é marca central dele em política externa, e é bom seguir nessa toada.

Ele o faz com absoluta convicção, e com tal peregrinação, afirma-se diante da humanidade, das multidões do mundo, mesmo recebendo olhares de desdém dos grandes trilhardários, dos possuidores de tanto dinheiro nas nuvens.

Um passo atrás

Um deslize, na minha opinião: Venezuela.

Grave, penso.

Não discuto a situação interna daquele país.

Os Estados Unidos sempre quiseram botar a mão na Venezuela, desde a chegada de Hugo Chávez ao poder.

Lá, realizadas inúmeras eleições.

Por que o Brasil escolhe exatamente a Venezuela para condenar?

Se de fato vetou a entrada do país nos BRICs, de que modo avalia tantos outros países, de corte bem menos democrático que a Venezuela, presentes nos BRICs?

O critério deveria ser um apenas: o do respeito à soberania dos países, como sempre defendeu até então o presidente Lula.

Prejudicou em muito a unidade latino-americana.

E restaram solitários: ele e Gustavo Petro, presidente da Colômbia.

A nova presidenta do México, Cláudia Sheinbaum, rapidamente, reafirmou o direito à soberania da Venezuela, certíssima. Não iria condenar a Venezuela, nem cobrar nada do país. Reconhecer a institucionalidade daquela nação, e ponto.

Era essa a melhor posição.

Experiência

Lula tem couro grosso. Já passou por poucas e boas, não só na vida familiar, onde experimentou muito sofrimento, como também na vida política.

Ao assumir a presidência da República, pela terceira vez, certamente tinha consciência do tsunami à frente.

Nesse aniversário, deve estar fazendo a retrospectiva de tudo isso.

Deve estar refletindo.

É bom momento para tal exercício.

Sabia, conhecia o Brasil.

De um lado, porque conhece as classes dominantes do país e também o empresariado internacional.

Ávidos.

Querem mais e mais dinheiro.

Mais e mais lucros.

E por isso, mais e mais mão de obra barata.

Explorar no limite a força de trabalho.

Querem mais e mais privilégios.

Não pagar impostos, pobres que paguem.

De outro lado, porque sabe, por cuidados não dirá, ter sido eleito um dos piores congressos de nossa história.

De hegemonia da direita e extrema direita.

Alertar, alertou: necessário eleger gente comprometida com o projeto de uma nação democrática, gente imbuída da missão de combater a concentração de renda, a obscena desigualdade enfrentada pelo Brasil, o sofrimento do povo como decorrência disso.

Nada.

Com os mecanismos da compra de votos.

Com a ascensão crescente de um pensamento conservador.

Crescimento do poder das igrejas neopentecostais.

Onda mundial de crescimento do poder e do pensamento da extrema direita.

Por tudo isso, deparou com o pior Congresso da história.

A faca sempre encostada na garganta.

Tudo por dinheiro.

A farra das emendas, a deturpar as funções parlamentares, e a aviltar o desempenho do orçamento público porque pretendendo aleatoriamente substituir atribuições do governo federal.

Uma faca de cada lado.

As duas casas, as direções se apresentam como autênticos cães de guarda.

Cães de guarda do capital.

Qualquer medida legislativa destinada a minorar um pouco a desigualdade, a tentar forçar uma participação maior do empresariado no esforço de construção nacional, a diminuir um pouco os gigantescos privilégios com que sempre foram aquinhoados, os dois se alevantam, como feras.

Então, decididamente não está sendo fácil governar, temos de reconhecer, e ao mesmo tempo, celebrar a extraordinária habilidade do presidente em lidar com tal situação, nada fácil, nada simples.

O cerco do capital: austeridade

Às vezes, ouço análises apressadas, críticas ácidas ao presidente.

Como se ele pudesse tudo, bastaria querer.

Como fosse possível a Lula, numa canetada, tudo resolver.

Quem sabe, fazer a revolução.

Besteira.

Certamente, Lula queria muito mais.

Queria fosse o povo brasileiro muito melhor atendido.

Não tivesse as mãos tão presas.

Não tem força para isso.

E não é irresponsável.

E não conta, nessa quadra histórica de refluxo das lutas populares de esquerda, com uma população mobilizada a defender políticas públicas distributivistas.

Uma população capaz de apoiar medidas sociais-democratas, nem se diga medidas próprias de uma revolução.

Lula, às vezes, no próprio governo, enfrenta problemas, a pretender contraditar aspectos centrais do próprio pensamento presidencial.

Vozes a ecoar os princípios da austeridade, a pretender cortar na carne.

Na carne do povo trabalhador.

Vamos combinar uma coisa?

O principal problema de Lula, desde o início e na sequência do governo, é a chamada austeridade.

À minha frente, um livro me encara, todo sedutor: A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo.

O título, preciosa síntese do trabalho, denúncia de uma artimanha do capitalismo, a aprisionar os governantes, cujo raio de manobra, por maiores sejam as boas intenções, restou muito reduzido.

A austeridade não é um erro político, dirá o grego Yanis Varoufakis a propósito do livro.

Trata-se de uma falácia, ele dirá.

Funcional.

A facilitar, conforme Varoufakis, interesses obscuros.

Pensamento a revelar a inteira verdade.

No Brasil, essa é a permanente discussão.

Tal austeridade, posta para garantir o pagamento dos juros ao grande capital, pagamento da dívida, obrigações erigidas como sagradas.

A bloquear iniciativas destinadas a progressivamente diminuir a desigualdade social a nos afrontar por séculos, caminhar no sentido de um país mais generoso com o povo.

Se há profundas carências sociais, tão presentes, se há fome, como há ainda, se há falta de dinheiro suficiente para a saúde, como há, se não há recursos na quantidade exigida para a Universidade Pública, como está ocorrendo devido a contingenciamentos visando a garantia da austeridade, se há carência em relação à reforma agrária, nada disso será configurado como crime.

Está tudo nos conformes.

Agora, experimente o governo criar clima para o não pagamento dos juros da dívida, e o céu desaba, e o governante, cai.

Este, o desafio do presidente Lula é a chamada austeridade.

O gigantesco desafio.

Estrutural.

Próprio da lógica capitalista na fase neoliberal.

Enfrentar os bancos, os grandes financistas, o capital financeiro.

Contraditar a lógica da austeridade.

Negociar, pela política, considerando a existência de tal lógica.

Não permitir o ataque a conquistas do mundo do trabalho, aos direitos sociais, ao salário mínimo, ao benefício da prestação continuada.

Não permitir reduzir o orçamento da educação, como verdadeiramente vem acontecendo.

Evitar a sangria do SUS, absolutamente fundamental à saúde do nosso povo, sangria ainda a acontecer.

Não fosse o SUS, e o genocídio da pandemia, ocasionado pelo governo negacionista, seria muito maior.

Diante do grito da austeridade, permanente, incessante, ouvem-se sempre as vozes tonitruantes, ameaçadoras da mídia empresarial, as vozes de aluguel, parlamentares, gente que só o diabo, a demonstrar que sem aperto de cintos, sem retirada de direitos, a vaca vai para o brejo, o país afunda.

E enquanto isso, seguimos como um país de juros estratosféricos, a bloquear inclusive o desenvolvimento capitalista, ao menos desenvolvimento do capital produtivo.

Curioso: nunca se fala em aperto de cintos do lado do grande capital.

De modo nenhum.

Este, deve permanecer intocado.

Recentemente, surgiram vozes dentro do próprio governo pretendendo sangrar a classe trabalhadora, o mundo do trabalho.

Lula teve de vir a campo, e nisso tem sido insistente, para dizer o quanto é valiosa para ele a ideia de continuar com o povo no orçamento.

Deu um freio de arrumação.

Não contassem com ele para cortar investimentos em educação, saúde, em dinheiro para os pequenos e médios agricultores.

Disse: nada disso deve ser considerado gasto.

Investimentos voltados à melhoria das condições de vida do povo.

Não, não tem uma tarefa fácil governar.

Nunca foi, e agora, mais ainda.

Porque não se trata apenas de lidar com uma burguesia local, cuja força nunca foi grande e cujas posições políticas nunca foram verdadeiramente nacionalistas.

Trata-se de lidar com o capital internacional, um adversário muito mais perigoso, cuja atuação pretende apagar qualquer ideia de soberania nacional, apagar fronteiras.

E deseja que seja o mundo um território sem lei, sujeito apenas aos desejos do capital financeiro, submetido à voracidade do lucro: o episódio Elon Musk, uma evidência disso, felizmente enfrentado corajosamente pelo país.

O presidente vai comemorar o aniversário.

É de lei.

É da cultura, nossa cultura.

Deve celebrar.

Tem muitas razões para isso.

Mas ele sabe: dia seguinte, e os bancos e financistas de toda natureza estarão na porta gritando a favor da austeridade, do aperto de cintos na classe trabalhadora, e na manutenção do sagrado pagamento de juros, dos mais altos do mundo.

O presidente sabe ser esta a principal encruzilhada.

Equilibrar-se diante do neoliberalismo, buscar garantir forças políticas para governar.

Mas continuar coerente, como se estivesse chegando de Garanhuns, como se estivesse à frente dos trabalhadores na Vila Euclides, como se estivesse visitando os catadores de lixo em São Paulo, ou lado a lado com o padre Júlio Lancelotti: governar só vale a pena se for para melhorar a vida das maiorias.

Até porque, nele, isso tem sido um compromisso de vida.

Nele, foram depositadas as esperanças do povo brasileiro.

Pela terceira vez.

Tais esperanças nunca foram frustradas.

Não será dessa vez.

Vai seguir em frente, ao lado da classe trabalhadora.

Como sempre.

O povo brasileiro o quer com saúde.

Com disposição.

Coragem para enfrentar o dragão da maldade.

Este, o desafio.

Parabéns, presidente!

Feliz aniversário, Lula!

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros