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Para boa parte da sociedade, as conquistas libertárias dos anos 1960 e 1970 foram para o ralo. Foram totalmente despolitizadas

Até 22 de outubro deste ano, Geisy Arruda era uma anônima estudante do 1º ano do curso de Turismo da Universidade Bandeirante de São Paulo. Naquela noite, a moça de 20 anos ia encontrar o namorado depois das aulas no campus de São Bernardo. Iriam a uma festa, portanto, ela se produziu: microvestido, salto alto, maquiagem.

Horas depois de entrar na faculdade, Geisy não era mais anônima. Tinha protagonizado, no papel de vítima, uma cena que se espalhou na rede. Virou caso de polícia. Teve sua vida virada do avesso.
A cena? Grotesca e assustadora: a moça entra no prédio, uma estrutura com pátio interno e corredores que dão para esse pátio, e começa a subir a rampa. Seu microvestido rosa-shocking é percebido pelos colegas, que começam a reagir. Mal. Ela foi perseguida, xingada, fotografada, filmada, ameaçada de estupro por boa parte dos cerca de 700 alunos que estavam no prédio.

Encurralada, refugiou-se na sala de aula. Alguns alunos esmurravam a porta e pediam ao professor de Geisy que a liberasse. Para estuprá-la. Ela só saiu da sala de aula escoltada pela Polícia Militar, chamada pelo celular por uma colega de classe.

Os perpetradores do linchamento moral não tiveram vergonha. Ao contrário: as cenas da barbárie caíram na rede. Um blog contou a versão de Geisy. A imprensa descobriu a história.

A coisa não parou por aí. Secundando a atitude fascista de seus alunos, alguns dias depois do episódio a Uniban pagou um anúncio nos dois principais jornais de São Paulo em que comunicava a decisão de expulsar Geisy. O motivo: "flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade". Não por parte da multidão ululante, agressiva e intolerante. A culpa, dizia a Uniban, era só dela.

"Foi constatado que a atitude provocativa da aluna buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar", dizia o comunicado, "o que resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar." Plenamente justificável diante da "falta" de Geisy parecia ser o raciocínio da Uniban. No mesmo dia, a direção da instituição voltou atrás e recuou da decisão de expulsar a aluna.

Passada a indignação inicial pelos tons sombrios de todo o episódio, vale a pena pensar no que ele tem de revelador. Há uma massa estudantil nova, nas diversas universidades e faculdades particulares espalhadas pelo país, formada por alunos oriundos das classes C e D. Esses estudantes têm pouco a ver com aqueles que fizeram parte das lutas democráticas na ditadura ou que foram às ruas pedir o impeachment de Fernando Collor de Mello.

Uma manifestação promovida pela UNE e outros movimentos sociais em apoio a Geisy foi recebida com hostilidade pelos alunos da Uniban. De maneira geral, esses estudantes não queriam saber de confusão; não queriam que o nome da instituição de ensino que frequentam ficasse com fama não de intolerante, mas de um lugar que admitia a "bagunça" da manifestação. Muitos achavam que Geisy deveria ter sido expulsa para que a vida deles seguisse seu curso "normal".

Seria injusto imputar essa micromentalidade apenas aos estudantes ou à juventude. Afinal, quando a própria instituição de ensino fomenta a estreiteza de pensamento, identificando na agressão uma atitude natural, louvável até, de "defesa do ambiente escolar", o buraco é mais embaixo.

Para boa parte da sociedade, as conquistas libertárias dos anos 1960 e 1970 foram para o ralo. Foram totalmente despolitizadas. Aproveitase aquilo que serve, de forma mais imediata, aos indivíduos, sobretudo os do sexo masculino; aos seus desdobramentos mais complexos, social e psiquicamente desafiantes, aplica-se o moralismo mais retrógrado. Admitir uma certa disponibilidade feminina para o desejo masculino, tudo bem; se relacionar civilizadamente com o desejo feminino, não dá.

Bia Abramo é jornalista, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate