Chega a ser chato repetir. No entanto, insisto: necessário sepultar quaisquer ilusões com a mídia empresarial. Ela tem lado, sempre teve ao longo de nossa história. Sei, é difícil conseguir convencer as pessoas disso, inclusive alguns do pensamento de esquerda. Por isso, bato na mesma tecla. Houve quem se iludisse com os movimentos da Rede Globo diante do governo anterior, quando combateu o negacionismo dominante, especialmente na área da Saúde.
Eu dizia, então: saudemos a atitude. Ao menos isso. Foi positivo. Uma voz dissonante diante da política genocida daquele governo, a resultar em mais de 700 mil vítimas da epidemia da Covid. Mas, pedia atenção: nos aspectos estruturais, aqueles referentes à política econômica, ao neoliberalismo, a Rede Globo e todas as demais redes, e todos os veículos impressos, e toda as emissoras de rádio vinculadas a elas, estavam inteiramente de acordo com os rumos dominantes, ditados pelo ministro Paulo Guedes.
Não sei de houve a atenção devida de parte de nossa esquerda quanto à cobertura dos últimos dias feita pela Rede Globo quanto à chamada desoneração fiscal. Há um livro imprescindível de Beatriz Kushnir, sobre o qual não canso de recomendar, onde ela trata da política servil, cúmplice da Folha de S. Paulo em relação à ditadura. Leiam-no: “Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988”. Volto a ele especialmente pela expressão cães de guarda. A Rede Globo é autêntico cão de guarda do capital. Não rosna, apenas. Morde, e morde com gosto.
Preciosas, seguidas matérias sobre a essencialidade da desoneração, preocupada, ela sempre preocupada com a criação de empregos. Certa, ou assim fingindo, seja a tal desoneração uma virtuosa criadora de empregos. Uma suíte atrás da outra, não importando tivesse ou não justificativa do ponto de vista das rotinas jornalísticas. Essencial era demonstrar o quanto o Brasil necessitava daquela desoneração, da desobrigação do capital quanto às necessidades do País.
Nossa salvação. Um discurso bem construído, pura ideologia capaz de deixar submersos os verdadeiros interesses. Como falar deles? Como dizer da necessidade de garantir a manutenção das taxas de lucro às custas do sacrifício das políticas públicas? Quem acompanhe minimamente tais manobras, acompanhem os privilégios do capital, as seguidas atitudes de mamar nas tetas do Estado enquanto o combate, sabe: tais desonerações jamais produziram os resultados apregoados pelos cães de guarda, jamais entregaram as ofertas prometidas, os empregos anunciados.
O presidente Lula vetou a desoneração. Eu não tinha certeza que fosse fazê-lo. Estava cercado por variados cães de guarda. Os midiáticos, já falados, e aqueles tão vorazes e ferozes quanto os da mídia, presentes no Legislativo, dentes afiados, sempre prontos a chantagear o presidente. Lula agiu corretamente, na defesa dos interesses do País, de modo especial da classe trabalhadora. Resta ver, agora, como agirão os cães de guarda. Não espero outra coisa senão a continuidade dos ataques. Saciar o capital é impossível. Ele nunca considera os interesses dos trabalhadores e da nação.
Jornalismo enviesado
No início, falei de sepultar ilusões. Insisto. Combinada com a ofensiva obscena em favor do capital, a mídia desdobrou-se nos últimos dias noutro claro ataque, e aí investindo diretamente contra o governo Lula. O Estadão saiu na frente, e a manada o seguiu. Não compensa estender-me no relato sobre a cobertura, hoje em dia chamada fake news, prática antiga de nossa mídia, sobre a chamada “Dama do Tráfico”.
A dama, e o digo com respeito não com ironia, participou de reuniões com funcionários do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, integrando comitiva de Comitê Nacional de Prevenção à Tortura do Amazonas, sendo casada com um cidadão preso por ligações com o tráfico. Não havia, como não há, qualquer irregularidade na presença dela, sobretudo porque lutando por melhores condições carcerárias para presos, e parte de uma entidade com tais objetivos.
A mídia, no entanto, precisava de um gancho para demonstrar seguir em oposição a Lula, evidenciar não haver qualquer lua de mel com o governo. O recado era esse. Com a sequência de matérias, capitaneada pelo Estadão mas acompanhada pelo restante da mídia, e de modo muito particular pela Rede Globo, a mídia pretendia atingir o ministro Flávio Dino. Ela o via, certamente o via, como um quadro político em ascensão.
Discurso sólido, capaz de enfrentar a extrema-direita, falando linguagem convincente, domínio do pensamento religioso, Dino foi se afirmando, tornando-se uma possibilidade de candidatura à presidência da República e também de chegar ao STF. Melhor atingi-lo logo antes de alçar voo mais sólido. De cambulhada, atingiu de modo desonesto também o ministro Sílvio Almeida, dos Direitos Humanos. Evidente, no entanto, uma coisa: o alvo era Lula, sempre ele. O atual presidente carregará a honra, porque é honra, de sempre ter sido ao longo da vida política dele uma espécie de inimigo número um da mídia empresarial brasileira. Os cães de guarda não dormem, nunca.
Direitos trabalhistas desrespeitados
A ofensiva, no entanto, foi tão raivosa, tão direcionada, tão politicamente dirigida, a ponto de revelar um subterrâneo cheio de impensáveis maldades. Ao menos, na origem, o Estadão. Falo com alguma tristeza porque trabalhei no jornal, e pude constatar então a existência, durante a ditadura, de alguns incontornáveis padrões éticos, muito embora fosse simpático aos militares, tivesse sido participante de uma forma ou de outra da empreitada golpista de 1964. Na quadra atual, os padrões éticos foram pro lixo.
Denúncia ao Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal, feita como uma Notícia Fato, aponta a editora de Política do Estadão, Andreza Matais, como tendo agido de má-fé e com assédio moral em matéria contra o ministro Flávio Dino. Teria assediado e obrigado repórteres recém-contratados a relacionar Flávio Dino à “dama do tráfico do Amazonas”.
Obrigados, de acordo com a denúncia ao MPT-DF, a preparar e publicar reportagem enviesada, concebida, pautada por ela, para atingir o ministro. Os denunciantes revelam interesses subjacentes à matéria. Andreza Matais preparou e executou a reportagem com o objetivo pessoal oculto de revigorar a candidatura do ministro Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), à vaga de ministro do STF, tentando assim atingir Flávio Dino, um dos candidatos ao cargo, presumivelmente.
Lembram dela se dizer amiga pessoal de Dantas e de ter utilizado, com o mesmo objetivo, de opiniões expressas pelo ministro Gilmar Mendes de modo a conferir ares de gravidade ao factoide concebido por ela. A tática, diz a denúncia, imita operações de desinformação de arapongas e outros profissionais de inteligência.
Na ausência de fatos a indicar favorecimento ou comunhão de desígnios com a tal chefe do tráfico, a fabricação ardilosa da notícia, se notícia fosse, buscava dar ares de verdade a indicar Flávio Dino como alguém ligado ou simpático ao narcotráfico, pouco importando a falsidade dessa construção, e dessa forma se visse inviabilizado como nome para o STF, além de ser politicamente prejudicado em amplo sentido – ao menos era essa a pretensão.
O factóide esconde uma sequência de violações constitucionais, dizem os denunciantes. E precisam ser analisadas e investigadas com urgência pelo Ministério Público do Trabalho, conforme pedem. Matais, ainda de acordo com os denunciantes, submeteu os repórteres envolvidos na fabricação do ‘escândalo da dama do tráfico’ a condições degradantes e humilhantes. Recém-contratados, oriundos de cidades fora de Brasília, não tiveram alternativa senão cumprir as ordens arbitrárias e enviesadas da chefe.
Em paralelo, revelam terem sido submetidos a jornadas degradantes sem contabilização ou pagamento de horas extras e com o emprego de recursos e objetivos escusos, não admitidos na prática diária do jornalismo. Ao MPT-DF se pede investigar se Matais praticou ilegalidades trabalhistas e profissionais e se o Estadão violou leis de imprensa.
Um dos autores do factóide criado pelo Estadão para atacar Flávio Dino, jornalista André Shalders admitiu nas redes sociais que a alcunha “dama do tráfico” para definir Luciane Barbosa Farias foi inventada por ele: ouviu de uma fonte, gostou, e mandou brasa. Agora, resta esperar as investigações do MPT-DF diante de tão graves acusações.
Ao finalizar, registro: o restante da mídia, Rede Globo em particular, seguiu o rastro do Estadão sem qualquer cuidado. É assim: um veículo pauta, e os demais, se houver interesse político, porque se trata de interesse político e não jornalístico neste caso, vão atrás, como se fosse apenas repercussão de matéria, e sendo apenas isso, nem sequer apuram.
Dá-se como verdadeira a reportagem, e seguem adiante. Com isso, atingem os dois ministros, de modo especial Flávio Dino, e atingem o presidente Lula, em última instância o alvo principal. Seguem a mesma toada do Estadão. Sepultem as ilusões.
Referências
“BOLSONARISTAS usam matéria do Estadão para associar Lula ao crime organizado nos EUA”, denuncia Gleisi. Brasil 247, 16/11/2023.
DEPUTADO bolsonarista Gustavo Gayer chama ministro Sílvio Almeida de “amigo do narcotráfico”. Brasil 247, 21/11/2023.
GLEISI rebate ataques do Estadão contra o PT: ‘patranha é publicar notícia falsa sobre o Ministério da Justiça’. Brasil 247, 22/11/2023.
HAILER, Marcelo. Exclusivo: denúncia ao MPT-DF relata armação do Estadão no caso da “Dama do Tráfico”. Andreza Matais, editora de Política do Estadão, é denunciada ao MPT-DF por ter agido de má-fé e com assédio moral em matéria contra o ministro Flávio Dino; ela nega. Fórum, 18/11/2023.
JORNALISTA do Estadão admite que apelido “dama do tráfico” de Luciane Barbosa foi baseado em uma única fonte”. Brasil 247, 16/11/2023.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo : Boitempo Editorial, 406 p.
NASSIF, Luís. O jornalismo de implicância. GGN, 16/11/2023.
NASSIF, Luís. Carta aberta a Francisco Mesquita Neto, diretor do Estadão e da ANJ. GGN, 22/11/2023.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol.), entre outros