Colunas | Cinemateca

No passado os filmes romantizavam a profissão e hoje mostram suas contradições em relação ao poder

Raramente o cinema brasileiro produz algo com a relevância crítica do documentário de Jorge Furtado, O Mercado de Notícias (Brasil, 94 minutos, 2014). O filme atinge alto patamar, ao discutir, numa época em que a mídia brasileira é hegemônica, oligopolista, comprometida com a direita e nitidamente golpista, o que é a relação entre jornalismo e democracia. Baseia-se no depoimento de treze jornalistas brasileiros de primeira linha, interrogando-se sobre questões candentes da profissão. Discutem-se o que é reportagem e repórter, a objetividade possível ou inteiramente crapulosa, a escolha e filtragem das fontes, os interesses investidos e o financiamento oculto, a ascensão do digital que condena o jornal à obsolescência. Também investiga alguns casos atuais de falsos escândalos criados pela mídia, cujo objetivo era comprometer pessoas ou instituições.

Em vez de alternar os depoimentos com trechos de documentários mais antigos, como é praxe, Jorge Furtado acrescenta um toque de invenção, arte e bom gosto. Apresenta intercaladamente a peça do dramaturgo elisabetano Ben Jonson de que deriva o título, irreverente comédia de 1625, The staple of news, encenada a rigor, com figurinos e cenários de época, imersos em bela música barroca. A peça, contemporânea ao surgimento do jornal, comenta com mordacidade o recém-nascido.

A figura idealizada por Hollywood do jornalista como membro de uma profissão heroica, tecnológica e moderna aparece precocemente nas comédias românticas dos anos 1930 e 1940, uma grande fase do cinema.

Além disso, era uma profissão para a “mulher moderna”. Os filmes desses anos são famosos pela sofisticação e por trazerem papéis avançados para mulheres liberadas, personagens que depois desapareceram das telas para só reaparecer lá pelos anos 1960, mas já de outro jeito. Era frequente que pusessem jornalistas em cena. Os filmes traziam estrelas como Rosalind Russell, Claudette Colbert, Barbara Stanwyck, Katharine Hepburn – todas habituadas a simbolizar a mulher profissional e autônoma; e nos papéis masculinos Spencer Tracy, Cary Grant, Clark Gable, James Stewart, Fred Mc Murray, William Powell.

Entre todas eleva-se a arte de Katharine Hepburn, a atriz que até hoje mais recebeu o Oscar e que ficou identificada com esta luminosa fase. Em Costela de Adão (direção: George Cukor, EUA, 1950,1h41min.), ela e Spencer Tracy são um casal de advogados envolvidos um contra o outro nos dois lados de uma causa, a acusação e a defesa. Em Mulher do Dia (direção: George Stevens, EUA, 1942, 1h54 min.) ela e o mesmo antagonista são ambos jornalistas. E em Liberta-te Mulher (direção: Mark Sandrich, EUA, 1936) ela trabalha numa revista feminina. Rosalind Russell também é jornalista, com seu colega Cary Grant que a explora, ou tenta explorá-la, em Jejum de amor (EUA, 1940, 1h32 min.), dirigido por Howard Hawks. E Clark Gable é um jornalista desempregado, ao lado de Claudette Colbert, no clássico de Frank Capra, Aconteceu Aquela Noite (EUA, 1945, 1h45min.). Em outro clássico do mesmo diretor, Adorável Vgabundo (EUA, 1941, 2h20 min.), James Stewart é manipulado para tornar-se um símbolo político e Barbara Stanwyck é a jornalista que ajuda a manipulá-lo.

Não podemos esquecer que o Super Homem, na vida diária o Clark Kent de óculos com grossas hastes pretas, é jornalista. Um pouco antes, o herói das histórias de detetive de Gaston Leroux, Rouletabille, é igualmente jornalista. Exerce a mesma profissão Tintin, de invencível vitalidade, até hoje presente nas páginas e nas telas embora o autor belga Hergé já tenha desaparecido há muito. Grandes romancistas, como Balzac e Zola, dedicaram não poucas páginas a eles.

 

 

O paradigma dos filmes em que ele é o herói justiceiro certamente é Todos os Homens do Presidente (direção: Alan J. Pakula, EUA, 1976), sobre o escândalo de Watergate, que acabaria levando à queda do presidente Richard Nixon, obrigando-o a renunciar às vésperas do impeachment. As investigações revelaram que ele tinha conhecimento da invasão do Diretório Nacional do Partido Democrata, seu adversário, e, pior ainda, acobertara o crime, negando-o repetidas vezes, inclusive sob juramento, mentindo à Nação. O trabalho de detetive deveu-se a dois repórteres do Washington Post – Carl Bernstein e Bob Woodward –, que recebiam segredos de Estado de um membro das altas esferas, protegido pelo anonimato e alcunhado de Deep Throat”, com quem tinham encontros numa garagem subterrânea. Só meio século depois o então vice-presidente do FBI, segundo em comando do sinistro J. Edgar Hoover, assumiria o papel desse informante. O escândalo originou um grande livro e um grande filme, ambos com o título de Todos os Homens do Presidente, que escancararam para o mundo esses meandros escabrosos. Ótimos atores como Robert Redford e Dustin Hoffmann encarnaram a dupla de jornalistas.

Nixon, que era bem desconfiado, mandava gravar clandestinamente todas as conversas em seu gabinete, para se proteger e poder apelar para os testemunhos contidos nas fitas. Só que o feitiço a certa altura virou-se contra o feiticeiro, e as gravações foram requisitadas pela Justiça – e nelas o papel de Nixon não mais pôde ser escondido.

Recentemente Robert Redford filmou um documentário sobre esse filme. Ali se vêem Bob Woodward e Carl Bernstein, velhinhos, ao vivo; os dois atores que os encarnaram; trechos do filme; e outros depoimentos importantes dos implicados em Watergate, assessores pessoais de Nixon que pegaram cadeia, provavelmente no lugar dele. O vice-presidente, Gerald Ford, um mês depois de substituí-lo outorgou-lhe o “perdão presidencial”, e ele nunca foi incomodado. O documentário traz trechos da célebre entrevista original Frost/Nixon, realizada décadas mais tarde, trazendo revelações. Há pouco foi exibido um filme de ficção com os nomes de entrevistador e entrevistado no título.

Dentre os inúmeros filmes nessa linha, alguns são característicos. Em Crime Verdadeiro (EUA, 1999, 3h), que Clint Eastwood dirigiu e protagonizou, o jornalista é a tal ponto um heroi justiceiro que, sozinho, vai salvar no último minuto, literalmente, um negro inocente condenado à morte por assassinar uma branca.

Semelhante é Intrigas de Estado (direção: Kevin Macdonald, EUA, 2009, 120 min.), com Russell Crowe, Ben Affleck, Helen Mirren. Mais de política parlamentar do que de jornalismo, é bem o caso do “jornalista como justiceiro”. É ele quem investiga porfiadamente, descobrindo e revelando corrupção e crimes de um político, apesar de ser seu amigo e correr risco de vida como alvo de pistoleiros a soldo.

 

O Quarto Poder (EUA, 1977, 1h53 min.) ainda é uma alusão à imprensa, mas como o diretor é Costa Gavras, oferece uma guinada crítica: o repórter promete ajudar o segurança de museu que perdeu o modesto emprego e a cabeça, fazendo reféns e exigindo seu emprego de volta. Mas a mídia se apossa dos acontecimentos e intervém com sensacionalismo, estragando tudo. Anos mais tarde surgirá um filme chamado O Quinto Poder (direção: Bill Condon, 2h minutos, 2013, EUA).

 

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate