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Da mesma maneira que o Chico Buarque compositor é uma unanimidade, o Chico Buarque escritor é visto com inúmeras reservas.

É curioso: da mesma maneira que o Chico Buarque compositor é praticamente uma unanimidade, o Chico Buarque escritor é visto com inúmeras reservas. É como se, depois de ser um dos fundadores da música popular brasileira moderna e um de seus mais incensados autores, Chico não pudesse se arvorar a tornar-se também escritor – como se fosse pretensão demais, ou vaidade excessiva, ou, na interpretação mais mesquinha de todas, uma espécie de marketing pessoal extratrabalhoso.

Ao lado dos reservados, há evidentemente a legião de fãs, para a qual tudo o que Chico faz é incrível – as músicas, as letras, as atitudes, as peladas, os livros ou simplesmente a própria existência. Há evidente exagero aí, mas, se pudermos olhar de uma forma generosa, compreende-se: Chico é quase a encarnação do projeto utópico brasileiro do século 20. Profundamente comprometido com a história e a cultura brasileiras, nascido em berço esplêndido, sobretudo no que toca a sua herança intelectual, dono de uma obra que conjuga elaboração refinada e enorme capacidade de comunicação e, como se não bastasse tudo isso, um homem bonito.

Não espanta que, ao lançar-se na aventura de enfrentar o terreno espinhoso da literatura, a possibilidade de ver a sua obra descolada de tudo isso fosse toldada, para o bem ou para o mal, por todos esses preconceitos. De certa maneira, qualquer a priori é injusto com Chico. Depois de quatro romances, bastante distintos entre si, dá para afirmar que, como escritor, ele repete aquilo que o caracterizou como compositor – domínio das ferramentas, estilo próprio e originalidade.

Em suas tentativas iniciais, Estorvo (1991) e Benjamin (1997), havia um evidente desequilíbrio entre a intenção e o gesto, ou seja, mais esforço em experimentar a nova linguagem e a nova forma de expressão do que propriamente romances. Ainda assim, o clima claustrofóbico de Estorvo prenunciava que o Chico escritor seria, digamos, menos fácil que o Chico compositor.

Com Budapeste, de 2003, Chico atingiu outro patamar. Para trás ficaram os exercícios mais ou menos diletantes ou experimentais do homem de talento; o romance é surpreendente. Divertida e intrigante, a trama arrisca várias reflexões metalinguísticas – o protagonista é um ghostwriter, para começar –, sem, no entanto, tornar-se hermética. Budapeste, brincando com a impossibilidade de compreensão pela linguagem escrita, como que reflete o próprio lugar do Chico escritor.

Neste quarto e mais recente, Leite Derramado, o projeto é evidentemente mais ambicioso. Trata-se de rever, de certa forma, 200 anos da história do Brasil, sob a ótica de um moribundo. Numa narrativa instável, de idas e vindas temporais e quase nenhuma certeza, revemos a trajetória descendente de Eulálio Assumpção, que nasce membro da elite escravocrata privilegiada e vai rolando ladeira abaixo até o leito do hospital público de onde narra sua história. No centro de todas as incertezas está Matilde, a paixão e nêmesis de Eulálio.

A desfaçatez do protagonista e as distorções sucessivas que ele opera para contar a história de Matilde remetem simultaneamente a dois dos grandes romances de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Como o último, Eulálio é um homem ciumento, e de Matilde, portanto, só temos sua visão comprometida. Apesar da influência machadiana absolutamente não disfarçada, Leite Derramado contém mais do que a homenagem aos seus pais intelectuais – o próprio Sérgio Buarque de Holanda incluído.

Colocando em relevo as desigualdades fundadoras – homem-mulher, branco-preto, rico-pobre, cidade-campo –, Chico, de certa forma, enterra o tal do projeto utópico. Nesse sentido, Leite Derramado retoma a verve, e talvez, a importância política de Chico Buarque.

Bia Abramo é jornalista, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate