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Quando a "noite" começou a se dissipar, as diferenças apareceram, e de lá para cá só vêm se aguçando e se radicalizando

A frase no sentido afirmativo, "somos todos iguais nesta noite", é de uma canção de 1977, dos compositores Ivan Lins e Vitor Martins, e a referência, como boa parte daquilo que se produzia na música popular brasileira do período, é profundamente metafórica. A "noite", claro, era a ditadura militar e "nós", a esquerda, éramos "todos iguais" — estávamos sujeitos às mesmas leis do silêncio, à mesma falta de democracia — e, parecia, queríamos as mesmas coisas: liberdades democráticas, uma sociedade mais justa.

Depois, quando a "noite" começou a se dissipar, as diferenças apareceram, o que é mais do que razoável, e de lá para cá só vêm se aguçando e se radicalizando. Após as vitórias do PT nas eleições presidenciais, sobretudo depois da reeleição de Lula, têm aparecido verdadeiros abismos entre aqueles que, antes, estavam todos a bordo da nave da esquerda. Hoje, em plena luz do meio-dia, só para continuar no reino da metáfora, aparecem os tipos políticos mais estranhos, que vão do simplesmente patético ao definitivamente daninho.

E muitos deles ocupam posições privilegiadas na mídia. Aguinaldo Silva, ex-repórter policial, ex-editor do primeiro jornal gay do Brasil, o Lampião, e há tempos teledramaturgo da Rede Globo, oscila entre os dois tipos. Ele atualmente é o autor responsável pela novela das "oito" da emissora, Duas Caras. Dado o enorme volume de texto, as telenovelas contam, na verdade, com equipes de escritores, mas ainda assim há autores, e Aguinaldo Silva está entre eles, que conseguem imprimir algo que se poderia chamar de um tom "autoral" às telenovelas.

Desde antes de a novela estrear, Aguinaldo Silva vem se esmerando em dirigir provocações à esquerda em geral — e, claro, ao PT em particular —, num grau de intensidade até agora só comparável às diatribes paranóides da revista Veja e de seu ilustre articulista/ blogueiro Reinaldo Azevedo.

Em entrevista ao caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, o ex-escritor afirmou que o vilão da história — rapaz pobre que se torna milionário dando um golpe na mocinha rica — era inspirado em José Dirceu, uma vez que o golpista faz uma operação plástica para mudar de rosto: "Um sujeito que faz isso é capaz de tudo". Os detalhes romanescos da trajetória de Dirceu na guerrilha e na clandestinidade realmente excitaram a imaginação da mídia e foram relembrados como prova inequívoca de que os acontecimentos do mensalão já estariam então predestinados, e, nesse sentido, Silva não fez mais do que macaquear essa associação.

Para além da provocação tola, Silva também afirmava que "queria esquecer o politicamente correto". Quando a novela, enfim, começou, essa "agenda" contra aquilo que o próprio autor classificou como politicamente correto ficou clara. No microcosmo de Duas Caras, a sociedade brasileira está dividida entre ricos e privilegiados e por dois tipos de remediados e pobres: os abusados e mal-acostumados pelas ilusões da esquerda e aqueles que se "comportam". Os dois tipos orbitam em torno de uma favela fictícia chamada Portelinha e de uma universidade privada. A primeira é dirigida com mão de ferro por uma versão atualizada de um coronel nordestino, um branco, carismático e autoritário que "governa" à base de carisma e ordens vociferadas. Na segunda, um bando de professores "de esquerda", liderados por um ex-reitor invejoso e oportunista, bate-se contra um intelectual "exilado em Paris" que renegou as convicções esquerdistas da juventude. Os estudantes também estão classificados em duas categorias, auto-explicativas, a dos "baderneiros" e dos "sérios".

Não se pode negara Aguinaldo Silva alguma agilidade para traduzir, de alguma forma, as contradições pelas quais passa o processo político brasileiro. Poderia até ser divertido, não fosse o extremo moralismo do autor. Sim, porque na visão de Silva as contradições têm uma solução simples e clara: a volta à ordem e à paz que existiam antes que os pobres, pretos e favelados tivessem sido empoderados com a chegada de um operário à Presidência da República.

Bia Abramo é jornalista