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Com o atual governo e as políticas em curso, segue a matança de nossa juventude. Só um governo de convicção democrática e de uma cultura fundada no respeito à vida e à liberdade pode contribuir para derrotar a cultura do genocídio

Fui convidado honrosamente pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) a participar da XI Conferência dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada a partir do dia 26 de novembro, estendendo-se até 10 de dezembro deste 2020, na modalidade virtual, como convém nesses tempos de pandemia. Recupero aqui minha exposição naquele encontro, dia 27 de novembro.

Só posso imaginar nossas crianças e nossos jovens no quadro mais geral da humanidade e no quadro mais amplo também do nosso País. Somos um mundo desigual, capaz de condenar milhões de pessoas à miséria, e as crianças e a juventude ao abandono, à fome. Somos um mundo sob hegemonia capitalista, cuja alma é a exploração, o lucro, e ponto. Só a luta política pode possibilitar mudanças nesse quadro. Política, a chave de tudo.

É bom registrar: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nascido em 1990, é filho da Constituição Cidadã de 1988, surgida no calor das mobilizações pós-ditadura, terminada em 1985, depois de tanta luta, tanto sangue, e grandes mobilizações do nosso povo. É a política.

A Constituição de 1988 foi o mais ousado passo na tentativa de construção, no plano institucional, de um Estado de Bem-Estar, do qual estamos ainda a léguas de distância. O SUS, o ECA, o SUAS, em momentos diversos, são decorrências daquela Constituição, sequência da luta para fazer a Carta sair do papel e tentar modificar a vida das pessoas, e modificou. A luta política nos levou àquela Constituição.

É possível garantir direitos e políticas públicas integradas e de inclusão social às nossas crianças e adolescentes sem que liguemos essa possibilidade à luta política geral? Não creio. Para garantir tais direitos teremos sempre de estar atentos ao entorno, e lutando para modificá-lo quando o quadro político dominante for um obstáculo, como penso o é atualmente.

Do golpe de 2016 aos dias de hoje, o Brasil tem experimentado recuos políticos, sociais, econômicos, culturais – há um evidente retrocesso civilizatório. A eleição do atual presidente revelou a existência de um forte pensamento conservador na sociedade brasileira, alicerçado em valores cuja essência caminham na contramão dos objetivos do ECA.

Temos pela frente uma luta político-cultural, a pugnar não só com o atual governo nacional como, também, com uma parcela considerável da sociedade brasileira, e com esta nosso esforço terá de ser o do convencimento, não o do confronto. Às vezes, ao pensar apenas no Estado estrito senso, nos esquecemos o quanto é essencial a luta permanente, cotidiana, a construção insistente da hegemonia, tantas vezes escapando pelos dedos sem que nos demos conta.

Registre-se para alimentar nossas esperanças: há ventos novos soprando na América Latina e mais ao norte. Argentina, Bolívia, Chile, pelas bandas de cá, pra começar. EUA, com a vitória de Joe Biden, fim do pesadelo Trump, sem que se alimentem exageradas ilusões com as políticas do Império. No Brasil, temos o presidente e sua política, destrutiva sob todos os aspectos: econômico, social, cultural, ambiental, tudo. Então, pergunto: “e nós dessa XI Conferência com isso?”

As políticas sociais, profundamente afetadas. Os valores conservadores, afirmando-se. As políticas discriminatórias, excludentes, racistas, homofóbicas, misóginas, a raiva dirigida contra os pobres, tudo isso se acentua, estimulado diariamente desde cima, com as declarações e políticas presidenciais.

Ninguém pode dizer ter sido enganado pelo presidente – ele sempre revelou o seu pensamento, sua admiração pelos torturadores, sua natureza manifestamente homofóbica, seu estímulo permanente ao uso de armas, incentivo à morte, seu desprezo pelos pobres, sua aversão aos nordestinos. Quem o apoia o faz sabendo de tudo isso.

E sabendo da continuidade de uma política destinada a manter o país na situação de uma das nações mais desiguais do mundo. Tal desigualdade é a fonte de todos os nossos males, todas as nossas violências. E pensar que os seis homens mais ricos do Brasil concentram a mesma riqueza que toda a população mais pobre do Brasil, mais de 100 milhões de pessoas. Isso é obsceno e real.

E imaginar que três deles vivem da venda de drogas, mais ainda. Lícita, a droga, o álcool, mas droga, não? Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira são sócios da Ambev e estão entre os seis mais ricos, entre os bilionários do país.

Essa concentração de renda e riqueza tão absurda explica tanta violência, o massacre de nossos jovens, a par da equivocada política de combate às drogas – somente às chamadas ilícitas.

Estamos longe, muito longe, da proteção integral de nossas crianças e adolescentes, seja pelas profundas deficiências na educação, pela ausência de políticas culturais a estimular novos valores, seja pela miséria, pela fome, pela ausência de condições mínimas de existência em milhões de lares brasileiros, e esse estado de coisas só tem se agravado de 2016 aos dias de hoje.

Digo tudo isso para chegar à violência a afetar profundamente nossa juventude, nossos adolescentes, nossas crianças. Não é metáfora dizer: há uma guerra civil em andamento no Brasil. O número de mortes violentas em 2019, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi de quase 48 mil pessoas – exatas 47.773 vidas foram perdidas.

Dessas, mais de 35 mil eram negras, e mais de 24 mil tinham menos de 29 anos – nosso futuro sendo comprometido, nossa juventude sendo assassinada. Dado incontestável: nascer negro influencia não só na possibilidade de ser morto pela polícia, mas de ser assassinado em qualquer tipo de homicídio.

Nosso racismo estrutural, nossa herança dos mais de 300 anos de escravidão.

Foram mortas 6.357 pessoas pela polícia em 2019. Mais de 74% são jovens de até 29 anos, do sexo masculino chegando a quase 100% das mortes – 99,2%. Negros, a maioria: 79,1%. Tudo é assombroso: 72,5% das mortes foram causadas por armas de fogo. Três a cada quatro dos assassinados pelos policiais eram jovens entre 15 e 29 anos; 31,2%, entre 20 e 24 anos; 19,1%, entre 25 e 29 anos.

Estamos numa sociedade que mata. É grave que 6.357 mortes sejam responsabilidade de policiais. Mas a maioria das mortes é decorrente do clima criado, da cultura da morte agora claramente estimulada pelo atual presidente da República, que pretende e vem conseguindo a liberação desenfreada da venda de armas, com a conivência com as milícias, com o crescimento do crime organizado. E já falamos, as mortes são principalmente de jovens negros, não custa insistir.

Se quisermos chegar aos dias atuais, podemos recorrer ao Brasil 247, de 19 de novembro de 2020: o número de assassinatos aumentou 4% nos primeiros nove meses deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Foram registradas 1276 mortes a mais, ao passar de 31.022 para 32.298 mortes violentas. Dados exibidos pelo índice nacional de homicídios criado pelo portal G1, com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. Menos pessoas nas ruas e mais mortes – parece um paradoxo, mas é apenas o retrato em branco e preto de uma sociedade em que a cultura da morte está em ascensão.

Como Superintendente de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Governo da Bahia entre 2017 e 2019, recebi inúmeras mães de jovens negros e pobres mortos por policiais. Crianças mortas, assassinadas. Normalmente, mães jovens ainda, e responsáveis por suas famílias. Testemunhei a dor e a impotência dessas jovens mães diante da morte, muitas vezes mães cujos companheiros haviam caído no mundo, deixando-as sós com seus filhos. E isso se repete tragicamente em nossas cidades país afora, sem contar vidas de meninas e meninos subtraídas por balas perdidas, assim chamadas, mas sempre matando crianças negras e pobres, balas com destino.

Até quando?

De um ponto de vista emergencial, propus: a Conferência, a par de inúmeras outras resoluções, haveria de pensar, não obstante o cenário de um presidente defensor da disseminação de armas nas mãos das pessoas, pensar num plano de contenção dessa mortandade.

Não só denunciar ao país e ao mundo o genocídio de nossos jovens, mas propor medidas capazes de conter a cultura da morte em curso, seja a praticada pela polícia, e aí o Estado, em princípio, pode tomar atitudes capazes de modificar isso, seja a decorrente da violência advinda da própria sociedade, e isso implica no envolvimento do Estado e da sociedade para ir construindo uma nova cultura – de solidariedade, fraternidade, empatia, não da morte.

Que se proponha uma educação fundada nos direitos humanos, uma educação libertadora, capaz de resgatar Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro. Que se pense numa nova política em relação às drogas, distante dessa tolerância zero. Que nos aproximemos de países civilizados e passemos a adotar políticas de convivência com as drogas, de redução de danos, compreendendo a não existência de civilizações sem drogas.

Penso e quanto mais penso, volto à política, em seu sentido mais amplo. Não subestimo o esforço de milhares de militantes engajados na luta das crianças e adolescentes. Como não subestimo a inteligência e criatividade de nossas crianças e adolescentes. Como obviamente dou extraordinário valor a essa XI Conferência, suas resoluções, e sua repercussão, que dependerá, no entanto, de a sociedade abraçar o que ela vier a decidir.

Nosso cenário político, no entanto, ainda é adverso. Segue na contramão da garantia de direitos de nossas crianças e adolescentes, da proteção integral.

Pessimismo da inteligência. Otimismo da vontade. Temos de ir resistindo, dando passos, trincheira por trincheira. Esse governo não quer garantir direitos. Quer garantir armas. É o governo da cultura da morte – não inaugurou essa cultura, mas hoje é o próprio governo a promovê-la, incentivá-la. Essa cultura terá de ser derrotada. Não será uma luta de curto prazo. Passa por eleição, por mudança de governo e de mentalidades. Desde já, tem de começar.

Teremos que atuar em todas as frentes. Com prioridade para a luta política. Olhando o aqui e agora, e sem perder a perspectiva dos passos seguintes, do horizonte a ser construído a cada dia.

Com este governo, com as políticas em curso, segue a matança de nossa juventude. Só outro governo, de convicção democrática e de uma cultura fundada no respeito à vida, às nossas crianças, à nossa juventude, à cultura fundada na liberdade, e que considere necessário distribuir renda e riqueza, só um governo assim pode contribuir para mudar esse quadro, derrotar a cultura do genocídio e preservar a vida de nossas crianças e adolescentes, nossos jovens.

Sigamos na estrada, insistamos na luta.

A vida não para.

A luta continua.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros