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Localizada entre duas potências nucleares, ao norte a China e ao sul a outra Coreia, a Coreia do Norte produziu armas atômicas e sofreu pressões dos EUA

O recente aumento das fricções e das ameaças verbais entre Coreia do Norte, Coreia do Sul e Estados Unidos tem sido objeto de cobertura da mídia nas últimas semanas, sempre responsabilizando a primeira devido à explosão de seu terceiro artefato atômico em fevereiro e à forte retórica belicista adotada por seus porta-vozes. No entanto, a realidade e a responsabilidade que cabem a todos os atores envolvidos tornam a análise da situação muito mais complexa do que sugere o atual maniqueísmo mediático.

A divisão da península coreana em dois países, apesar de se tratar do mesmo povo, foi resultado dos acordos entre as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, particularmente, EUA e URSS. O Norte ficou sob influência soviética e adotou um regime socialista comandado pelo líder da resistência contra a ocupação japonesa, Kim Il-sung, e o Sul permaneceu sob influência americana e capitalista, presidido pelo autoritário Syngman Rhee. A divisão geográfica se deu arbitrariamente na altura do Paralelo 38, mas até hoje há polêmicas sobre a posse de pequenas ilhas no Mar Amarelo, bem como sobre os limites marítimos, o que frequentemente leva a escaramuças entre os dois países.

A Coreia era uma monarquia e foi ocupada em 1910 pelo Japão. O regime econômico então existente na península e preservado pelos japoneses era praticamente um sistema feudal clássico. A derrota do Japão em 1945 resultou no ingresso da península diretamente na modernidade e em processos básicos de industrialização com muitos conflitos políticos e sociais, que culminaram em uma guerra de três anos que arrasou as duas Coreias e custou a vida de 2,5 milhões de pessoas. O armistício firmado em 1953 nunca se transformou em um acordo formal de paz, o que juridicamente significa que ainda estão em guerra.

Os regimes políticos instalados dos dois lados do Paralelo 38 foram autocráticos desde o começo, mas o fim da Guerra Fria abriu a possibilidade de substituir as sucessivas ditaduras militares na Coreia do Sul por um regime democrático, e foi durante os governos de presidentes liberais como Kim Dae-jung e Roh Moo-hyun (1998 a 2008) que houve uma série de iniciativas para reaproximar as duas Coreias e destensionar as relações. Uma consequência prática foi a criação do complexo industrial de Kaesong, operado por empresas sul-coreanas em território do Norte e com operários locais.

Todavia, o tema da unificação é polêmico na Coreia do Sul, pois os setores mais conservadores da população se opõem, ou devido à natureza do regime político da Coreia do Norte, ou por ressentimentos por esta ter iniciado a guerra em 1950. Mesmo entre setores da esquerda há diferenças fundamentais na análise do caráter do socialismo norte-coreano e quanto à sua compatibilidade ou não com um processo de integração das duas Coreias.

As relações entre os dois países voltaram a se deteriorar com a eleição do presidente conservador Lee Myung-bak, que intensificou as críticas ao Norte, assim como aos liberais sul-coreanos que promoveram as aproximações, posições estas reiteradas com menor ênfase pela sua sucessora, Park Geun-hye, eleita em dezembro de 2012.

Durante a Guerra Fria, apesar da proximidade política com a China, a União Soviética assumiu a defesa da Coreia do Norte, embora esta tenha adotado um modelo de socialismo particular, denominado Juche, em que a autodefesa e o desenvolvimento soberano do país eram questões centrais. Já os EUA protegiam a Coreia do Sul, inclusive com a presença de milhares de tropas e equipamentos mantidos até hoje.

O desmantelamento da URSS no início da década de 1990 significou que dali por diante a Coreia do Norte dependeria de si mesma para sua defesa e para manter seu sistema político. Localizada entre duas potências nucleares, ao norte a China e ao sul a outra Coreia, onde as Forças Armadas americanas estacionadas possuem armamento atômico, embora não admitido oficialmente, a Coreia do Norte optou por também desenvolver esse tipo de armamento, e em 2006 detonou seu primeiro artefato.

A resposta americana foi pressionar a Coreia do Norte por meio de sanções econômicas e políticas a abandonar seu programa nuclear, sem maiores efeitos. Entretanto, em 2007 um acordo em uma negociação plurilateral, do qual também participaram China, Rússia, Japão e Coreia do Sul, levou a Coreia do Norte a fechar o reator nuclear de Yongbyon e se comprometer a interromper a fabricação e detonação de novas bombas.

Mesmo assim a tensão não diminuiu, porque o Japão utiliza a capacidade nuclear da Coreia do Norte para justificar a possibilidade de se rearmar, o que vedado pelo Tratado de Paz assinado em 1945, quesito que foi incluído em sua Constituição. A Coreia do Sul usa o mesmo argumento para solicitar maior apoio militar americano. Os EUA atendem a essas preocupações de dois de seus principais aliados na região com enorme satisfação, pois o Sudeste Asiático e o Pacífico representam uma área de fortes interesses americanos, conforme demonstra a Parceria Transpacífica (TPP) na área comercial e o “pivô asiático” na segurança.

Dessa forma, os Estados Unidos têm instalado sofisticados equipamentos de defesa no Japão e, nos últimos anos, ampliado a dimensão e o alcance dos exercícios militares conjuntos anuais com a Coreia do Sul. Em 2010, houve troca de tiros de artilharia entre as duas Coreias durante um desses exercícios e, agora, temos as declarações hostis entre os três países.

A quem menos interessa esse quadro é à China, que para se consolidar como potência regional precisa reduzir a influência americana na área, e a retórica norte-coreana fornece aos EUA o argumento para justamente reforçá-la. Cada vez que os Estados Unidos e a ONU ampliam as sanções econômicas contra a Coreia do Norte, aumenta a dependência desta com a China, seu maior parceiro comercial e com quem compartilha uma fronteira de 1.400 quilômetros, o que também pode representar um ônus para os chineses.

Por outro lado, interessa à humanidade, e aos coreanos em particular, a desnuclearização da península coreana. Mas, tendo em vista a realidade da existência de armas atômicas na região, sua única utilidade é a dissuasão, isto é, usar a possibilidade de uma guerra nuclear com profunda destruição mútua para convencer o outro a não iniciar um ataque. E, nesse sentido, as provocações e a retórica dos três países diretamente envolvidos em nada ajudam a manter a paz na região. Além disso, uma guerra nuclear, mesmo que restrita às Coreias, também abriria um precedente para que outros países queiram resolver suas disputas regionais por esse meio.

A solução é política, por meio de negociações respeitosas entre as partes, e a China e a Coreia do Sul teriam condições de liderar esse processo.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais