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Uma etnia que possui uma população de 1,5 a 3 milhões, não se sabe ao certo. São considerados pela ONU uma das minorias mais perseguidas no mundo

As imagens de milhares de pessoas da etnia Rohingya fugindo de Myanmar (ex-Birmânia) para campos de refugiados na vizinha e pobre Bangladesh, devido a ataques e destruição pelo exército de várias de suas aldeias no estado de Rakhine, provocam sentimentos de repulsa e fortes cobranças à atual ministra das Relações Exteriores Aung San Suu Kyi, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1991.

Ela é acusada de omissão por não ter impedido a ação do exército ou pelo menos tê-la condenado, conforme expressou a carta assinada por outras 31 pessoas também agraciadas com o prêmio, além de diversas reportagens na mídia internacional.

Não há dúvidas quanto à gravidade das violações de direitos humanos em Myanmar, principalmente após a instalação do regime militar no país em 1962, que governou até 2015. O ocorrido agora com os rohingyas é mais um fato na folha corrida do exército de Myanmar, que se utilizou, ao longo de mais de meio século, da violência extrema, não somente para controlar as diferentes etnias minoritárias que vivem no país, mas também para reprimir a oposição formada pela etnia majoritária composta pelos birmaneses budistas.

O recente ataque aos rohingyas evidentemente deve ser condenado e repudiado pela comunidade internacional. No entanto, a partir disso, responsabilizar a dirigente política, Aung San Suu Kyi, pelo ocorrido há uma longa distância e não é possível avaliar sua postura sem conhecer a realidade de Myanmar.

A antiga Birmânia era um reino que os ingleses anexaram à Índia por meio de três guerras durante o século 19. A ocupação e colonização inglesa foram tratadas com resistência latente o tempo todo pelos birmaneses. Em 1937, a Birmânia foi separada da Índia e recebeu uma administração colonial própria. Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, foi palco de importantes confrontos entre tropas inglesas e japonesas, pois estas tentavam avançar até a Índia, sem conseguirem, embora ocupassem a Birmânia. Alguns setores políticos nacionalistas se aliaram ao Japão, num primeiro momento, e algumas etnias, como a Karen, já apoiavam os ingleses e assim se mantiveram. Ao mesmo tempo, antes da Segunda Guerra, os ingleses facilitaram a imigração de muçulmanos vindos do que se tornaria depois o Paquistão Oriental e hoje Bangladesh e que compõem a etnia Rohingya, com a intenção de criar problemas para os birmaneses budistas. Dividir para governar, jogando etnia contra etnia, sempre foi uma tática dos colonizadores, e vários países, africanos em particular, sentem até hoje os efeitos desse problema.

A Birmânia libertou-se da Inglaterra em 1948 e Aung San, pai da atual ministra de Relações Exteriores, é considerado o “pai da independência” do país e autor das negociações de um acordo em 1947 com as principais etnias minoritárias para que se integrassem ao novo país independente (Acordo de Panglong), com presença no Parlamento e em outras instituições, embora até hoje a reivindicação delas seja a formação de uma federação de estados. No entanto, Aung San foi assassinado poucos meses antes da proclamação formal da independência e da integração ao país das cerca de 130 etnias minoritárias. Rohingya, Karen, Kachin, Shan, entre outras, representam aproximadamente 30% dos 53 milhões de habitantes de Myanmar.

A Birmânia independente adotou um sistema de república parlamentarista e durante os primeiros anos o partido fundado por Aung San, Liga Popular Antifascista pela Liberdade (AFPFL na sigla em inglês), possuía a maioria no Parlamento. Mas nesse meio tempo o governo teve de enfrentar as rebeliões armadas dos karens e os maoístas do Partido Comunista da Birmânia (PCB). O governo birmanês nessa época, inclusive, teve papel importante na criação do “Movimento dos Países Não Alinhados”. Em 1962, houve um golpe militar que perdurou até 2015 por meio de diferentes generais presidentes.

Aung San Suu Kyi, que foi estudar e trabalhar no exterior, voltou à Birmânia em 1981 por razões pessoais e acabou se tornando a mais importante liderança das forças de oposição contra a ditadura militar por meio de um partido que ajudou a fundar, a Liga Nacional pela Democracia (NLD na sigla em inglês). O partido disputou e venceu a eleição parlamentar de 1990, mas o resultado não foi reconhecido pelos militares e sua liderança foi posta em prisão domiciliar pouco antes da eleição. Os protestos contra essas medidas foram duramente reprimidos e mais de 5 mil pessoas foram mortas pelo exército, e centenas de membros da NLD, jogados na prisão.

Em 1991, na cerimônia de premiação do Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi foi representada por seus dois filhos. Embora os militares lhe oferecessem salvo-conduto para viajar, ela decidiu não comparecer, pois sabia que não lhe permitiriam regressar. A mesma preocupação a reteve em Myanmar quando seu marido estava morrendo de câncer na Inglaterra, alguns anos depois. Embora ela estivesse isolada de contatos com seus correligionários, sua presença e defesa da não violência, inspirada em Mahatma Gandhi, animavam a luta pela redemocratização do país.

Em 2010, devido à pressão internacional, o regime militar deu início a um processo de distensão política e Aung San Suu Kyi foi libertada da prisão domiciliar. Em 2012, foi eleita em eleições complementares para o Parlamento. Nas eleições parlamentares de 2015, seu partido foi vitorioso, mas uma cláusula casuística introduzida pelos militares na Constituição proibia pessoas que foram casadas com ingleses de se tornarem presidentes do país. Com isso ela não pôde assumir a presidência de Myanmar, cargo que acabou destinado a um correligionário próximo, Htin Kyaw.

No entanto, esse não foi o único casuísmo da transição para a democracia. Os militares reservaram certo número de cadeiras no Parlamento para seus indicados, bem como o domínio sobre o comando das Forças Armadas e do Ministério do Interior, que controla a polícia e as fronteiras, entre outras atribuições ligadas à segurança.

Os rohingyas são uma etnia que possui uma população de 1,5 a 3 milhões, não se sabe ao certo. A maioria se encontra em Myanmar, no mínimo 800 mil, mas estima-se que antes da recente diáspora cerca de 600 mil já vivessem espalhados por Bangladesh, Paquistão e Tailândia. São considerados pela ONU uma das minorias mais perseguidas no mundo. Quando os militares aprovaram a Lei da Cidadania, em 1982, os rohingyas não foram incluídos como cidadãos de Myanmar.

Algumas das etnias possuem grupos armados ou para se defender da truculência do exército nacional ou para sustentar suas lutas por autonomia. Os karens, por exemplo, possuem uma milícia armada de aproximadamente 5 mil homens, e entre os rohingyas e outro grupo étnico, os arakans, existe uma milícia chamada Arakan Rohingya Salvation Army – Arsa (Exército da Salvação Aracanês e Rohingya), que segundo analistas indianos teria ligações com agrupamentos islâmicos radicais do Paquistão e Bangladesh.

A Arsa foi responsável pelo ataque a 24 postos policiais no estado de Rakhine no início de setembro, causando várias mortes e provocando a brutal retaliação do exército que está levando ao atual êxodo dos rohingyas.

Aung San Suu Kyi, como já mencionado, foi criticada pelo seu silêncio diante do ocorrido e mais ainda por alguns que a citam como a pessoa que exerce o poder de fato no país. O que não é verdade, pois quem o exerce, apesar de a NLD possuir a maioria no Parlamento e a presidência do país, é o exército. Há inclusive a possibilidade de este estar radicalizando na repressão aos rohingyas para provocar uma reação da ministra de Relações Exteriores, que não seria respeitada, e assim humilhá-la.

Além disso, ela tem de lidar com o nacionalismo e a xenofobia da maioria da população birmanesa. Não faz muito tempo houve conflitos violentos entre budistas e muçulmanos no país que também deixaram mortos, particularmente entre o segundo grupo.

Portanto, não é razoável cobrar dos dirigentes o que eles não têm condições de entregar num primeiro momento. Temos muitas experiências de transições negociadas para a democracia na América Latina para entender como se pode avançar ou não. Aung San Suu Kyi tem um passado de resistência à opressão e luta pela democracia que lhe dá credibilidade. Ela deixou de ir à Assembleia da ONU para administrar o problema, que é muito sério e complexo, e poucos dias atrás fez um pronunciamento positivo. É necessário aguardar para ver os desdobramentos dessa crise.

Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais