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A força desse encontro que congrega pessoas e realidades tão distintas, porém tão irmãs da América Latina e Caribe, é o retrato de uma história de resistência e que constrói teorias e alternativas políticas transformadoras

A cidade de Buenos Aires sediou, nos dias 19 e 23 de novembro de 2018, o fórum e a conferência do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso1). Nos dois primeiros dias do encontro ocorreu o 1º Fórum Mundial do Pensamento Crítico, nos dias seguintes tiveram lugar as mesas temáticas e grupos de trabalho de caráter mais propriamente acadêmico2.

Quero destacar alguns aspectos relativos ao 1º Fórum Mundial do Pensamento Crítico, momento mais político do encontro, que alcançou mais visibilidade e repercussão, mas que nem por isso foi desprovido de esforços analíticos. O primeiro dia do Fórum lotou o Estádio do Club Ferro Carril Oeste, localizado no bairro de Caballito. O feriado na Argentina permitiu que milhares de portenhos fossem ao estádio ouvir uma das estrelas do encontro, a ex-presidenta, senadora e, possivelmente novamente, candidata à Presidência, Cristina Kirchner. Também participaram a presidenta Dilma Rousseff e o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel e muitos outros políticos e pensadores da América Latina, da Europa e de países do Sul Global.

O vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, iniciou o segundo dia do fórum com uma exposição mais analítica sobre os avanços, limites e desafios do projeto transformador dos governos de esquerda no continente. Linera analisou o fenômeno por ele denominado de neoliberalismo zumbi, movimento de retomada da agenda neoliberal nos anos 1990, desta vez sem o espírito renovador e de esperança característico da época do fim da história. Segundo ele, estamos vendo a reedição do mesmo projeto entreguista e fracassado, agora alicerçado no ódio, no medo, na violência e em discriminações de todo tipo. Diante disso, uma das chaves da nova onda de governos de esquerda na América Latina são as transformações no sentido do comum.

O debate sobre os direitos humanos coube a duas mulheres que lutaram contra a ditadura no Brasil e na Argentina, a ex-ministra Eleonora Menicucci e a avó da Plaza de Mayo Estela de Carlotto, respectivamente, com participações que comoveram todos os presentes. Também emocionante foi a intervenção das/os negras/os presentes no encontro, convocados ao palco pela ex-ministra Nilma Lino Gomes, a propósito daquele 20 de novembro: aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, dia da Consciência Negra no Brasil. Das falas, ressoou a pergunta sobre por que não se vem negras/os na Argentina, no Uruguai e em outros países do continente. O fato de caberem todos naquele palco é a expressão de uma ciência elitizada e branca, que só recentemente começou a se pintar de povo, com destaque para a política de cotas brasileira, mencionada várias vezes.

Também muito aguardada era a mesa com o professor Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra. Um dos idealizadores do Fórum Social Mundial e pensador do que vem sendo chamado de Epistemologias do Sul, Boaventura trouxe uma avaliação crítica das exposições políticas que o antecederam. Apontou a necessidade de radicalizarmos a democracia, avançando na democratização das próprias instituições, pois um dos pontos fracos da democracia liberal seria justamente sua incapacidade de defender-se de posturas antidemocratas. Mencionou a tão propagada necessidade de autocrítica dos governos de esquerda latino-americanos, referindo-se explicitamente à fala da presidenta Dilma no dia anterior.

A mesa de encerramento do fórum, cujo tema foi o Brasil, contou com Manuela D'Ávila e Guilherme Boulos, pois Fernando Haddad que também participaria não pôde comparecer.  Manuela e Boulos brindaram todos com belas análises, embaladas por gritos de "Lula Livre" e manifestações de solidariedade de todas as nacionalidades presentes. Boulos fez uma análise de conjuntura, de explanação da situação política e do processo eleitoral brasileiro. Manu fez uma abordagem mais reflexiva, mais tentativa sobre o posicionamento da esquerda brasileira e latino-americana. Bonito ver duas lideranças políticas jovens, falando pra tantos outros jovens, em sua maioria estudantes. Uma juventude que se reconhece como parte dessa história de lutas, mas que vem apontando novos caminhos e exprimindo novas demandas sociais, políticas e culturais em seus países.

A propósito das reflexões trazidas por Manuela, que expôs a necessidade de a esquerda se repensar diante das reconfigurações políticas e eleitorais recentes, sinto que vivemos um momento marcado por certo descolamento entre os anseios juvenis e, por que não, populares – de forma e conteúdo – em relação à política e o que os projetos de esquerda têm para oferecer. É certo que nossos projetos foram e seguem transformadores e inovadores em muitos aspectos, mas nem sempre conseguem se apresentar como tais. Ou talvez estejam mirando em transformações que não são exatamente aquelas de maior interesse de parcelas expressivas da população. Talvez por isso tenhamos tido dificuldade de compreender o resultado eleitoral no Brasil e as razões do crescimento do conservadorismo aqui e em outros países.

A dificuldade é política, mas também intelectual, de elaboração e de formulação. É nesse sentido que a fala de Boaventura e de outros companheiros refletiu ou acentuou em mim incômodo ou insuficiência mais geral em relação à Conferência Clacso, como um todo, e a outros espaços políticos e acadêmicos que tenho acompanhado. Boa parte das críticas tem me soado como "mais do mesmo". Isto é, a despeito de tantas mudanças recentes, parece que ainda seguimos tratando dos limites e desafios de nossos projetos políticos com as mesmas chaves analíticas do início dos anos 2000. A diferença é que antes nossa perspectiva era avançar, e agora resistir. Uma mudança de pólos que seria ao mesmo tempo dialética e negativamente contínua e descontínua. Fala-se da continuidade de um projeto (agora de resistência) num contexto cheio de elementos de descontinuidade; ao passo que não parece haver um movimento de ruptura e um processo de atualização e reflexão mais geral e global. Talvez este seja o salto ao qual Linera se referia: ressignificação do comum e acumulação de forças sociais e culturais para a segunda onda dos governos de esquerda na América Latina.

Penso que a própria resistência, ou as formas de resistência precisam ser problematizadas, tensionadas e estimuladas a se repensar, se reposicionar. Enfim, a se transformar em um novo projeto. Muito do novo que precisamos já está em curso. A força de um encontro como esse de Buenos Aires, que congrega a luta de pessoas e realidades tão distintas, porém tão irmãs de toda a América Latina e Caribe é o retrato de uma história secular de resistência e existência que produziu uma cultura riquíssima, que produz uma ciência inovadora e que constrói teorias e alternativas políticas transformadoras. É desse caldo que bebemos, é daí que vem a nossa força e é do esforço coletivo, da combinação da resiliência com as utopias renovadas, que deve seguir a transformação.

Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)