Colunas | Mundo

A antecipação das eleições regionais e municipais levou um setor importante da oposição na Venezuela a aceitá-la e a se engajar na disputa imediatamente

Duas medidas adotadas recentemente pelo governo venezuelano permitiram que ele retomasse a ofensiva política diante da pressão exercida pela oposição representada pela Mesa de Unidade Democrática (MUD). Uma foi a eleição da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) no dia 30 de julho e a outra foi a antecipação para outubro das eleições regionais e municipais, que estavam convocadas para dezembro e janeiro próximos, respectivamente.

A ANC foi composta por 545 deputados e deputadas, apesar da resistência violenta da oposição ao governo. Mesmo assim, num país onde o voto não é obrigatório, pouco mais de 8 milhões de eleitores compareceram às urnas, o que representou uma participação de aproximadamente 41% dos 19 milhões dos cidadãos habilitados a votar.

A posse dos constituintes ocorreu no dia 4 de agosto e a ex-chanceler da Venezuela, Delcy Rodriguez, foi escolhida para presidir seus trabalhos. Pelas normas vigentes, a ANC tornou-se a autoridade máxima do país enquanto durar o processo de discussão e elaboração da nova Constituição e deverá se instalar na Assembleia Nacional. A atual Constituição elaborada em 1999, durante o primeiro mandato do presidente Hugo Chávez, será a base das discussões e, ao final do processo, haverá um referendo para a população decidir se aceita ou não a nova versão.

A antecipação das eleições regionais e municipais foi uma das primeiras decisões da ANC e a segunda, ainda em operação, foi a de propor a submissão da atual Assembleia Nacional, dominada pelos deputados da oposição, às suas determinações. O resultado da convocação de eleições regionais e municipais levou um setor importante da oposição a aceitá-la e a se engajar imediatamente na disputa, baixando a intensidade das manifestações, o que gerou um paradoxo, pois aceitou as decisões de um governo e de uma Constituinte que não reconhece. É mais uma das várias contradições da MUD, pois anteriormente também reivindicava a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, mas, quando isso ocorreu, tentou inviabilizá-la.

No entanto, a extrema-direita venezuelana, liderada por personagens como Leopoldo López e Maria Corina Machado, do partido “Voluntad Popular”, e Antonio Ledezma, deverá prosseguir na sua campanha para depor o governo, inclusive tentando provocar uma intervenção externa, conforme ameaçou o presidente Donald Trump dos EUA recentemente, após se reunir com a esposa de López, Lilian Tintori.

A oposição da MUD à Assembleia Constituinte é parte de sua luta contra o governo, o qual vem tentando derrubar desde que perdeu a eleição presidencial em 2013 por pequena diferença (217 mil votos). Em 2014, o resultado das eleições municipais foi mais favorável ao governo, ao ampliar a diferença de votos entre oposição e situação para 8%. Porém, em 2015, a MUD elegeu quase dois terços dos membros do Parlamento venezuelano (Assembleia Nacional) e se utiliza dessa maioria para aprovar medidas contra o governo que normalmente são barradas na Suprema Corte. Atualmente, a oposição ao governo tem promovido violentas manifestações de rua que resultaram até o momento em aproximadamente 120 mortes, perpetradas tanto por agentes do Estado quanto por grupos paramilitares e indivíduos ligados à oposição de direita, que são responsáveis por pelo menos metade desse número sinistro.

Entretanto, o resultado da eleição da ANC mostra claramente que apesar de existir uma divisão importante na sociedade venezuelana, a correlação de forças pende a favor do governo, pois embora a abstenção tenha sido alta (59%), a abstenção média nas diferentes votações na Venezuela desde 1998 tem variado entre 20% nas eleições majoritárias e 33% nos referendos. Se considerarmos esses percentuais na abstenção do dia 30 de julho, poderíamos concluir que os que deixaram de votar em função do apelo da oposição foram entre 26% e 39% dos eleitores.

Na semana anterior, a oposição organizou um plebiscito não oficial para consultar a população se esta estava de acordo com a realização da eleição da ANC e, supostamente, 7,2 milhões de eleitores teriam participado, dos quais 90% se manifestaram contrários à eleição do dia 30. É impossível confirmar esse número, pois não houve qualquer fiscalização e, segundo os organizadores, os votos foram incinerados logo em seguida à apuração. Mas, supondo que esses dados estivessem corretos, teríamos 720 mil pessoas (10%) que se deram ao trabalho de votar no plebiscito oposicionista a favor da proposta do governo, deixando a oposição com pouco mais de 6 milhões de apoiadores, ou seja, um terço a menos dos que votaram nos deputados constituintes.

Enfim, essas avaliações são empíricas, uma vez que as variáveis dependentes são muitas.

Um obstáculo que o governo deverá enfrentar nas próximas disputas eleitorais é a difícil situação econômica da Venezuela, resultado da queda do preço do petróleo já há alguns anos, pois as políticas sociais do governo “chavista” eram sustentadas pelas exportações de petróleo, e nunca foram adotadas medidas reais para criar alternativas produtivas e muito menos negociações com o setor privado para engajá-lo na política econômica oficialista.

Embora as ameaças de Trump fortaleçam o discurso nacionalista e patriótico do governo, será uma tarefa árdua para o presidente Maduro e seu partido, o PSUV, convencerem os eleitores a minimizar os problemas cotidianos que enfrentam devido ao desabastecimento e ao mercado paralelo de mercadorias a preços exorbitantes, principalmente se a oposição conseguir se mostrar como uma alternativa confiável para o enfrentamento das mazelas econômicas. Até o momento, não parece ser o caso, pois o alinhamento da MUD com os golpistas no Brasil, com Macri na Argentina, entre outros do mesmo naipe, aponta para um modelo econômico que foi superado pelo chavismo desde 1998.

Os golpistas brasileiros declararam que não reconhecem a ANC, o que seria uma atitude pueril e totalmente contrária à tradição diplomática brasileira de reconhecer os princípios da autodeterminação dos povos e a não ingerência, salvo o fato de que poderão adotar medidas para, na medida do possível, prejudicar a economia venezuelana, agravando a situação, e proporcionar apoio material e político à MUD.

Esse quadro coloca para as forças progressistas a tarefa da solidariedade com o povo venezuelano e seu governo, pois a proposta política da oposição nada mais é que a das reformas neoliberais implantadas pelos golpistas no Brasil.

Kjeld Jakobsen é consultor da área de Cooperação e Relações Internacionais