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A tirania do capital será enfrentada. Às vezes demora um pouco, mas os trabalhadores sabem da necessidade de derrotar o modelo de exploração, exclusão e morte. A luta continua!

A movimentação no dia 1º de julho de trabalhadores de aplicativos, ocorrida em alguns estados, tem um simbolismo de grande alcance. A retirada brutal de direitos da classe trabalhadora desde o golpe de 2016, aprofundada sob o governo Bolsonaro, ao jogar milhões ao desamparo, precarizar profundamente as relações trabalho, dar aos patrões direitos absolutos, sufocar organizações sindicais, parecia condenar sobretudo o chamado precariado à inação, à sujeição, a uma aceitação passiva diante da ofensiva do capital.

Como trabalhadores dispersos, sujeitos a patrões invisíveis, submetidos a uma cruel superexploração, sem qualquer tipo de proteção social, sem organização sindical, se mobilizariam? Nosso raciocínio ainda estava preso, ao fazer tais perguntas, ao modelo fordista de organização sindical.

Não tem mais volta.

O mundo do trabalho mudou, e mudou radicalmente. Acabou o operário do chão da fábrica. Os direitos conquistados desde os anos 40 do século passado no Brasil como por encanto sumiram. As classes dominantes brasileiras, e não apenas elas, se unificaram no ataque a direitos essenciais, e o golpe de 2016 e mesmo a eleição de Bolsonaro só podem ser explicados por isso: ao capital não interessava mais a sobrevivência daqueles direitos.

Parece simplificação. Absolutamente verdadeiro, no entanto. É claro: a ofensiva relativa a direitos do trabalho é mundial. E não vamos nos estender quanto a isso. No caso brasileiro, no entanto, a ofensiva neoliberal parece uma blitzkrieg – guerra relâmpago – como jamais vista em nossa história recente, pela sua extensão e profundidade.

Em pouquíssimo tempo, a operação desmontou o Estado mal ou bem erigido desde os anos 1930, sepultou a era Vargas e o extraordinário legado deixado pelo presidente Lula e pela presidenta Dilma, jogando coisa de 28 milhões de pessoas no desemprego, e milhões em trabalhos precarizados, como o caso dos entregadores de aplicativos.

Trabalhadores jovens tornam-se, no jargão neoliberal, empresários de si mesmos, com sua precária bicicleta, com sua moto, sem qualquer proteção previdenciária, para ao final da semana recolher alguns míseros trocados de modo a oferecer pão à sua família ou a si próprios. Muitos deles, nem um calçado têm, às vezes contentam-se com uma rota sandália de dedo, não têm roupa adequada, e sob a pandemia, quando cresceu a importância deles, sem qualquer equipamento de proteção individual face ao coronavírus. O paroxismo da uberização. A face mais cruel, e verdadeira, do neoliberalismo.

Estão em plena pandemia, submetidos ao poder de empresários situados nas nuvens, ao domínio cruel e fantasmagórico do capital financeiro. A vida e a morte nas mãos desse capital e de um Estado absolutamente inerte diante dessa barbárie. Inerte, não, trabalhando na mesma direção.

Viver ou morrer – a decisão escapa-lhes, subtraída pelo capital. E volte-se: se antes havia um alvo claro, o patrão, hoje ele está nas nuvens, inalcançável. Esse admirável mundo novo, admirável pelo terror, parecia não lhes oferecer qualquer saída, qualquer chance de luta.

Além de tudo, a pandemia, já falada. Com sua caravana da morte passando e esses trabalhadores tornando-se muito mais essenciais. Para garantir a permanência em casa daqueles cuja renda garante isso, são eles os transportadores das mercadorias essenciais a essa população.

Faça-se o registro: todos deviam ter o direito de permanecer em casa até que a voracidade do vírus passasse, mas isso não é real, pois o governo federal, a par de nada coordenar quanto à pandemia, desenvolve uma política genocida, e estabelece uma ajuda absolutamente insuficiente para a população mais pobre.

O Estado brasileiro, nesse momento, não só tem o direito de matar, e o faz, sobretudo, contra a juventude pobre e negra, mas exercita o direito de expor milhões à morte, sem disso fazer segredo, ao desconsiderar a necessidade de a população permanecer em casa, em recolhimento social, para evitar a propagação do vírus. Diariamente, o presidente desfila pelas ruas em aglomerações, indicando esse caminho genocida.

Pois é, com a pandemia, com o aumento da exploração do trabalho, trabalhando sob sol e chuva, morrendo à míngua nas ruas, aos trabalhadores de aplicativos parecia não haver saída. Olha pra um lado, olha pra outro, e descobriram ter de se “virar nos 30”. Buscar aliados onde pudessem, mas, principalmente, aprendendo antigas lições, contar com as próprias forças. Com as armas da internet, com os aplicativos, chamaram os colegas à luta, e deram o primeiro sinal.

Um sinal vigoroso.

São trabalhadores. Têm direitos. Dignidade.

Nessa primeira movimentação, fizeram reivindicações quase elementares. No limite do direito de viver, de sobreviver, de não se expor tanto à morte.

Soube: tiveram a solidariedade de sindicatos, uma boa notícia. Os sindicatos de origem, história fordista, certamente estão intuindo não poder mais prescindir da solidariedade dos milhões de trabalhadores precarizados. Daqui por diante, pensar em lutas unitárias, inclusive e, quem sabe, principalmente contando com os milhões de sem-direitos, sem salário regular, sem vale-alimentação, destinos entregues a si mesmos. Dar as mãos, voltar à velha consigna: trabalhadores de todo o mundo, uni-vos, começando pelo seu país, o Brasil.

Os patrões de aplicativos piscaram: tentaram se explicar. Precariamente. Outras lutas virão, certamente. Com novas reivindicações.

Havia a expectativa de uma adesão grande da população. Não tenho ainda os dados para responder como ela de fato reagiu. Li reações muito ruins. De pessoas de camadas médias indignadas com a movimentação dos trabalhadores, preocupadas com a possibilidade de não serem atendidas em suas necessidades.

No fundo, no fundo, a mentalidade escravocrata ainda domina uma parte de nossa gente. Querem os meninos em suas bicicletas, em suas motos, chegando em suas casas, na noite chuvosa, trazendo uma pizza, um medicamento. Li: “afinal eles ganham para isso, são empresários como eu, donos do próprio negócio”.

Não sei se é cinismo. Talvez não.

Simples: querem-nos escravos.

Há quem pense assim, creiam.

Esse tempo acabou.

E o marco final, no caso dos trabalhadores de aplicativos, foi o dia 1º de Julho de 2020, primeiro passo de uma luta de longa duração, a continuar.

Curioso tenha acontecido às vésperas do Dois de Julho, data da derrota dos portugueses pelo povo baiano, garantindo aqui a independência do Brasil.

Nada será como antes.

Esse movimento influenciará milhões de outros trabalhadores na mesma condição, outras lutas virão, o precariado se alevanta lado a lado com os trabalhadores ligados aos sindicatos, e o mundo do trabalho vai se reorganizando nas novas condições de existência em que foram jogados face ao neoliberalismo.

A tirania do capital será enfrentada, como sempre foi. Demora às vezes um pouco, mas a luta continua. Os trabalhadores sabem da necessidade de derrotar o neoliberalismo, modelo de exploração, exclusão e morte.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros