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Um ou outro intelectual decreta o fim da esquerda. Como se bastasse apenas sua disposição de luta para milhões de pessoas ganharem as ruas. O buraco é mais embaixo

“...Assim como não se julga um
indivíduo pela ideia que ele faz
de si próprio, não se poderá
julgar uma tal época de
transformação pela sua consciência
de si; é preciso, pelo contrário,
explicar esta consciência pelas
contradições da vida material.”
MARX, Karl. Contribuição para a
Crítica da Economia Política. Lisboa:
Editorial Estampa, 1971, p. 29. 365 p.

O Partido dos Trabalhadores, nesses 40 anos de existência, tornou-se um partido essencial, fundamental às lutas do povo brasileiro. Resolvi, ao falar dos 40 anos, tratar de assuntos corriqueiros, próximos de nós, a ver com nossa conjuntura, tão áspera, tão desafiante. Novas realidades estão a nos cobrar respostas. Se não as temos, ao menos que reflitamos sobre as perguntas.

Há uma discussão em voga. Não são poucas as vozes a cobrar radicalização das esquerdas. A exigir delas ações ousadas diante do governo Bolsonaro. Sobretudo, a sustentarem a inação do PT, inegavelmente o principal partido de oposição do país.

Um ou outro intelectual decreta o fim da esquerda. Um clima de absoluto pessimismo. Não o de Gramsci – o pessimismo da inteligência. Mas, uma formulação a levar ao desalento, ao desânimo, ao abandono da luta. A esquerda está prostrada. Então, nada resta a fazer. É enfiar a viola no saco, enfurnar-se em casa, até um milagre acontecer. Nessas conclamações, ou lamentos, é como se bastasse apenas a disposição de luta da esquerda para milhões de pessoas ganharem as ruas.

É um esforço para fazer da simples e pura vontade o motor da mobilização das massas populares. É um retorno ao passado. Tentativa de recuperação do assalto ao Palácio de Inverno, como se estivéssemos no início do século passado. Como se os partidos atuais, o PT em particular, fossem bolcheviques, diante de uma classe operária capaz de seguir as palavras de ordem da vanguarda leninista. Vamos pensar um pouco sobre isso, e apenas sobre essa ideologia. É nessa toada minha pretensão de discutir os 40 anos do PT. No calor das discussões atuais e dos desafios a serem enfrentados.

Direitos roubados

Primeiro, é falso atribuir à esquerda, e ao PT em particular, qualquer esmorecimento diante da luta. Só para pegar os últimos quatro anos, ninguém há de negar as centenas de mobilizações em todo o país destinadas a barrar o golpe liderado por Michel Temer, as tantas movimentações em todo o Brasil contra a retirada de direitos, a disputa dura para evitar a vitória de Bolsonaro.

Perdemos a eleição, não obstante, ao lado de outras forças de esquerda, fizemos o bom combate. Durante a gestão do atual presidente, a esquerda brasileira levantou-se contra toda a política neoliberal, de modo especial contra a tentativa de sucateamento da educação pública brasileira, contra a reforma da Previdência, contra as várias tentativas de acabar com a soberania nacional, contra o esforço sistemático de destruição da Petrobras – a atual greve dos petroleiros é uma demonstração óbvia dessa resistência.

Há um esforço enorme para ocupar as ruas. Temos ocupado, de toda maneira possível. Mas, não temos conseguido mobilizar os milhões desejados, e não por falta de vontade, de disposição.

O buraco é mais embaixo. É necessário discutir a correlação de forças.

Há uma hegemonia do conservadorismo no país. O pensamento conservador espraiou-se pelo Brasil, e isso não se resolve com simples palavras de ordem, com exortações raivosas contra as esquerdas.

O mundo mudou, e aí sim, é provável que a esquerda, o PT incluído, não se tenha dado conta. Ao menos, não inteiramente.

O neoliberalismo, o capitalismo sob a hegemonia do capital financeiro, causou transformações de grande monta, e já se trata de uma fase relativamente longa, desde o fim da década de 1970 aos dias de hoje – quarenta anos.

A grande mudança

Essa mudança não é pequena. Não devemos subestimá-la. E nenhum acesso à doença infantil do esquerdismo no comunismo será capaz de enfrentá-la adequadamente.

Não basta dizer, como Marx, serem as classes dominadas tomadas pelas ideias das classes dominantes. Isso é verdadeiro, e sentimos isso no Brasil atual dramaticamente.

Nem falar na servidão voluntária, tratada por Marilena Chaui, em seu livro Contra a Servidão Voluntária. Se não se rompe com a servidão voluntária, nossos passos ainda serão tímidos. Marx e Marilena Chaui são extremamente úteis para nossa reflexão, fundamentais. Precisamos ir além, no entanto, sem deixá-los de lado. Complementá-los.

A fase neoliberal de organização capitalista, e aí me valho de Pierre Dardot e Christian Laval em A Nova Razão do Mundo, conseguiu a proeza de transformar cada trabalhador numa empresa, dando-lhe a falsa consciência de serem donos de seu destino, não importando tão miserável seja.

Nessa uberização do mundo, cada um transforma-se no empresário de si mesmo, milhões de miseráveis devotados ao que se conhece como empreendedorismo, pensado como essencial desde os anos 30 do século passado pelos principais teóricos do neoliberalismo. Essa nova subjetividade impregnou-se na alma dos trabalhadores. No caso brasileiro, contando com a ajuda decisiva das igrejas evangélicas neofundamentalistas, peça chave da alimentação do conformismo e do apoio à própria eleição de Bolsonaro.

Alertas essenciais

Recentemente, Marcio Pochmann alertou, e com ele tantos outros autores, sobre as mudanças profundas no mundo do trabalho, acabando com o papel essencial da classe operária fabril, não mais concentrada em grandes unidades. O mundo onde o PT nasceu não existe mais. Lembra-me da antevisão de André Gorz, com seu Adeus ao Proletariado, um livro dos anos 1980, profético.

José Sérgio Gabrielli, em discurso recente na Assembleia Legislativa da Bahia, onde foi homenageado com a Comenda Dois de Julho, seguia o mesmo caminho.

As relações de trabalho, diria ele no dia 10 de fevereiro último, privilegiam os vínculos trabalhistas precários e intermitentes, com a expressão máxima no entregador do Uber Eats de bicicleta. Essa precarização se estende a todo o mundo do trabalho, com a impressionante expansão das pessoas jurídicas de uma só pessoa – um homem, uma empresa.

A esquerda em todo o mundo está desafiada diante desse novo mundo. Os trabalhadores hoje não estão mais em grandes ou médias concentrações. Não só no Brasil, mas em todo o mundo capitalista. E isso, essa dispersão do mundo do trabalho, comporta novas perguntas, cobra novas respostas. Sobretudo, sobre como se mobilizarão esses trabalhadores espalhados por todo canto, inclusive em suas casas, empresários de si mesmos, envolvidos com a mentalidade de serem responsáveis pelo seu próprio destino, pelo seu sucesso ou seu fracasso, como o dizem Dardot e Laval. Com que pautas, com que projetos virão à tona na luta política e econômica.

Revolução na comunicação

Leve-se em conta uma realidade completamente nova no mundo da comunicação, com o advento das fake news, manobrado por especialistas na manipulação de dados, que transformam mentiras em verdade com a maior facilidade. E, também, faz explodir um escândalo atrás do outro, sem haver tempo para confirmações, e tornando tudo opaco. Bolsonaro ganhou as eleições assim, brinca com isso o tempo todo, diverte a mídia tradicional, e se comunica pelas redes sociais, dando orientação aos seus seguidores, séquito a nunca ser perdido. Enquanto mantém a mídia tradicional atenta aos seus disparates, todos concatenados, seu governo segue cumprindo de modo rigoroso e competente o programa neoliberal, com todas suas trágicas consequências para a maioria do povo brasileiro.

E as últimas pesquisas indicam Bolsonaro crescendo, o que na lógica da esquerda pode parecer absurdo, mas corresponde a uma hegemonia sendo construída nos EUA, na Hungria, na Itália e em várias outras partes do mundo. Zeca Peixoto, um professor da Bahia, fala da existência do partido algorítmico, a lembrar da Cambridge Analítica, e não custa recomendar a leitura do livro de Giuliano Da Empoli, Os Engenheiros do Caos, cuja abordagem sobre os especialistas do Big Data é riquíssima.

A visão de mundo da população não se desenvolve espontaneamente. Nunca se desenvolveu. Agora, um admirável mundo novo, um terrível mundo novo, está a nos desafiar a todos, a toda a esquerda, numa velocidade estonteante, num grau de controle de corações e mentes jamais visto.

As religiões

Essa conformação da sociedade brasileira, para ficarmos nela, está a nos exigir reflexões profundas e ação política, tudo ao mesmo tempo, e com muita urgência. Nosso desafio é mergulharmos de novo na atuação política junto aos trabalhadores, sobretudo junto aos milhões dos uberizados, dos homens-empresa, dos pauperizados, dos desempregados. Escaparmos de nossas bolhas, deixar de nos reduzir aos nossos sindicatos apenas. Os sindicatos não têm mais condições de conduzir sozinhos as lutas das grandes massas de todo o país. Vamos ter de encontrar novos meios de mobilização, novos caminhos, e talvez seja essa nova classe trabalhadora a encontrá-los, eles próprios, quem sabe.

Lula está coberto de razão quando cobra do PT a formação de núcleos evangélicos. A religião é parte essencial da vida do povo. E nós temos o dever de dialogar com todas as denominações, sem quaisquer pretensões de fazê-las reféns de nossas concepções. Partir dos pontos positivos de cada uma delas, e há pontos positivos em todas, e mostrar o quanto é possível aglutinar forças para a construção de um mundo mais justo.

As igrejas neofundamentalistas cresceram muito, se aproximaram do povo pobre, acolheram os deserdados, e por isso estão crescendo. E não há como ignorá-las.

Há uma grande luta pela frente. Política e cultural.

É necessário reconhecer o novo mundo do trabalho, as novas condições materiais de existência. As novas formas de dominação ideológica, envolvidas pela velocidade do Big Data. A luta se processando nas redes sociais, cada vez mais. A perda de espaço da mídia tradicional. Tudo isso nos indicando uma luta de longa duração. Porque, retomando Gramsci e seu conceito de hegemonia, só conquistando corações e mentes podemos fazer a revolução.

Numa conferência em Salvador, Marcio Pochmann, ele outra vez, dizia das duas forças com mais penetração entre as massas nos dias de hoje: as igrejas evangélicas e o crime organizado. Duro, mas verdadeiro. A volta às massas populares é uma necessidade imperiosa das esquerdas – o retorno ao chamado trabalho de massa, e compreendendo a nova realidade das classes trabalhadoras. Trata-se de uma caminhada de longo curso porque luta pela hegemonia.

O confronto é uma possibilidade sempre, e eu falei aqui da grande luta dos petroleiros, enfrentando o governo e sua máquina, heroicamente. Mas, o grande confronto só terá eficácia, quando se der, se contarmos com a força do povo brasileiro, dessa multidão de trabalhadores dispersos. Necessitamos é dessa força. Vamos, juntos com esses milhões, aprender juntos os novos caminhos da luta. Vamos nos educar juntos nesse processo, aprender juntos. Na luta, acumular forças. A pretensão de uma vanguarda capaz de dar o grito e ser obedecida é coisa do passado.

Lutas recentes nos animam a acreditar em passos ousados para acumular forças: a vitória argentina, decorrente da luta do povo, a rebelião chilena, a resistência continuada ao golpe na Bolívia, a insubmissão equatoriana e a luta dos trabalhadores franceses, na qual a união dos Coletes Amarelos com as tradicionais organizações sindicais apontam caminhos novos, e derrubam preconceitos quanto à unidade entre a classe trabalhadora nova, uberizada, e aquela ainda organizada.

O PT tem e terá um papel essencial na luta do nosso povo, inclusive das novas classes trabalhadoras. Tem condições de se adequar aos novos tempos e irá fazê-lo. Estará lado a lado com os milhões de trabalhadores brasileiros cuja consciência irá crescendo, tomando as rédeas de um processo de luta por hegemonia cuja duração não sabemos nem podemos saber. A previsão é não ser uma luta de curta duração.

Hegemonia não se recupera da noite para o dia.

Sabemos de uma coisa: o PT nunca abdicou da luta. Não vai abdicar. Por isso, é bom comemorarmos esses 40 anos. Nem é necessário me convidar: vou a todas as comemorações desse aniversário. O PT continua a ser essencial às lutas do povo brasileiro. Parabéns pelos seus 40 anos!

Referências

CHAUI, Marilena. Contra a Servidão Voluntária. Homero Santiago (org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. (Escritos de Marilena Chaui, 1)

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 413 p.

EMPOLI, Giuliano Da. Os Engenheiros do Caos. São Paulo: Vestígio, 2019. 190 p.

GORZ, André. Adeus ao Proletariado: Para Além do Socialismo. Rio de Janeiro: Forense, 1987. 203 p.

POCHMANN, Marcio. “Sociedade que deu origem ao PT não existe mais. Estamos com uma retórica envelhecida”. Sul21, 13/8/2019.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros