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O governo dificilmente conseguirá atender ao apetite do Centrão, seja por insuficiência de cargos e de recursos, seja pela insatisfação do ministro da Economia e da base social do presidente

Os desafios do Poder Legislativo, independentemente de quais fossem os eleitos para presidir a Câmara e o Senado nos próximos dois anos, seriam os mesmos e nessa ordem: 1) combater a Covid-19, acelerar o processo de vacinação e acolher os vulneráveis durante a pandemia; 2) ajudar o Estado brasileiro a sair da crise fiscal; 3) contribuir para o retorno do crescimento econômico; e 4) propor soluções para os graves problemas sociais, que serão agravados no período pós-pandemia. A dúvida é se os novos presidentes das Casas, por sua dependência e vinculação com o governo federal, irão priorizar essas necessidades do país, cabendo às oposições proporem e cobrarem medidas que atendam às suas prioridades, notadamente a solução dos problemas sociais.

O primeiro ponto dessa agenda, o mais emergencial, é uma questão humanitária, sem a qual milhões de pessoas irão morrer ou padecer nesse período de pandemia, especialmente os mais vulneráveis, que ficarão sem imunizante e sem trabalho capaz de proporcionar o seu sustento e de sua família. O Congresso, especialmente os partidos de esquerda, assim como ocorreu no início da pandemia, terá a obrigação de dar os primeiros passos na direção da aprovação do novo auxílio emergencial e de garantir imunizante e alimento para os mais necessitados durante essa segunda onda da pandemia.

O segundo item da agenda também tem o sentido de prioridade, considerando a gravidade das contas públicas, que estão em situação pré-falimentar e com risco de comprometer a capacidade do Estado de manter a máquina e as políticas públicas, especialmente em áreas essenciais, como saúde, educação, segurança e programas sociais. As oposições têm duplo desafio neste ponto: denunciar as causas da crise fiscal e propor solução para superá-la, mas sem apoiar a agenda de ajuste fiscal e a manutenção do “teto de gastos” da EC 95/2016.

As causas da crise fiscal e da escassez orçamentária, em grande medida, têm origem nas políticas neoliberais dos governos Temer e Bolsonaro. O primeiro provocou duplo estrago: de um lado aprovou o teto de gasto, que atacou o lado da despesa, com o congelamento do gasto público, e, de outro, atacou o lado da receita, com a reforma trabalhista, que, além de sacrificar empregos, reduziu drasticamente a arrecadação sobre a folha de salário, uma das principais fontes de receita de Previdência Social. O segundo, igualmente, tem sido duplamente deletério: seja no desmonte dos órgãos de arrecadação, seja na submissão aos mais ricos e privilegiados, tanto pela recusa em reduzir ou eliminar benefícios fiscais quanto na omissão em promover mudanças no sistema tributário capazes de recuperar a arrecadação do Estado, com a cobrança de tributos sobre lucros de dividendos, grandes fortunas, comercio eletrônico, grandes heranças e sobre produtos supérfluos, entre outros.

O terceiro ponto, que consiste na recuperação da atividade econômica, depende de um programa de desenvolvimento para o país, com investimento público e com segurança jurídica e perspectiva de retorno para os investimentos privados, especialmente na área de infraestrutura e nos setores de ciência, tecnologia e inovação, quesitos nos quais o país está ficando para trás. Em lugar de valorizar o desenvolvimento nacional, o governo brasileiro tem esquecido a indústria de transformação e apostado apenas na exportação de commodities (agrícola e mineral) e na importação de todo tipo de bugiganga dos países asiáticos e até mesmo de gasolina e óleo diesel, ampliando a dependência de produtos e matéria-prima estratégica, ou até mesmo abrindo mão de sua capacidade de desenvolvimento pelo país, como tem sido o caso das vacinas nesse momento de pandemia. O Brasil está perdendo investimentos e se transformando rapidamente numa grande zona franca para venda de produtos importados, com trabalho intermediado por plataformas digitais, todas estrangeiras, sem relação formal de trabalho nem qualquer benefício para o país e seu povo.

O quarto ponto da agenda, a questão social pós-pandemia, será determinante para o futuro do país, pois caso o Congresso não tome a dianteira nesse ponto, os brasileiros irão pagar um preço muito alto. O aumento da automação, da digitalização e o fim da estabilidade dos trabalhadores que tiverem suspensão de contrato ou redução de jornada durante a pandemia, combinado com a crise fiscal, a escassez orçamentária e a insensibilidade do governo, terão impacto muito significativo nos índices de desemprego, jogando milhões de desempregos no desalento, além da redução da renda e do trabalho formal, gerando um novo tipo de servidão em massa. Daí a urgência, de um lado, da necessidade de regulamentação da digitalização, da automação, do teletrabalho e do trabalho por plataforma, e, de outro, da criação de um programa de renda mínima, em caráter permanente, para socorrer os que serão excluídos do mercado de trabalho.

O mais grave nesse quadro é que o empenho do governo para eleger os presidentes da Câmara e do Senado não teve relação direta com a resolução desses quatro desafios. Pelo contrário, teve três outros objetivos: ampliar a divisão do país, assegurar um escudo protetor contra processos por crime de responsabilidade e aprofundar a crise com reformas em bases neoliberais. Nos dois primeiros casos, o interesse do presidente da República é fazer disputa política, como forma de fidelizar sua base mais radicalizada, tendo autorizado investir mais de R$ 3 bilhões de reais para comprar votos na eleição do Congresso, de um lado para evitar investigações e abertura de processo de impeachment, e, de outro, para pautar uma agenda de costumes (estatuto da família, escola sem partido, questões religiosas etc.), policialesca (excludente de ilicitude, legalização da venda de armas e munição, federalização das polícias, redução da maior idade penal) e temas como o voto impresso, entre outros.  E, no terceiro, o interesse é atender à agenda de mercado, representada pela pauta do ministro da Economia, que consiste no ajuste fiscal, na venda das empresas estatais, na precarização das relações de trabalho, via carteira verde e amarela, na privatização da previdência pública, mediante a instituição do regime de capitalização, entre outras medidas liberais e fiscais.

As oposições devem ser propositivas e precisam também explorar as contradições no interior da coalizão de apoio governamental para evitar retrocessos e avançar na perspectiva de superar esses quatro desafios. É pouco provável, por exemplo, que o presidente consiga conciliar os interesses fisiológicos do Centrão, que deseja cargo e verbas, com a visão do ministro da Economia, que que quer desmontar o Estado e reduzir despesas. Ou conciliar a pauta da “velha política”, defendida pelo Centrão e a pauta da “nova política” defendida por seus apoiadores. Em algum momento Bolsonaro terá que optar por seu ministro da Economia ou por sua base parlamentar, ou escolher entre a base parlamentar e sua base social, considerando os interesses inconciliáveis de ambas. O fato é que o governo dificilmente conseguirá atender ao apetite do Centrão, seja por insuficiência de cargo e de recursos, seja pela insatisfação do ministro da Economia e da base social do presidente.

No aspecto propositivo, além de apresentar alternativas para cada um dos desafios postos, as oposições precisam atuar fortemente no sentido de evitar a aprovação tanto da agenda de costumes quanto da integralidade das PECs Emergencial e do Pacto Federativo e da reforma administrativa, buscando excluir delas todos os aspectos que signifiquem prejuízo aos servidores e ao bom funcionamento da máquina pública ou redução do papel do Estado no provimento de bens e serviços. Quanto às propostas de carteira verde e amarela e da capitalização da previdência, sequer as oposições podem admitir discutir, considerando que já foram rejeitadas nos últimos dois anos.

O desafio das oposições nessa transição até a eleição de 2022, portanto, é enorme, porque precisa ser propositiva para apresentar um programa que reflita as necessidades do país e do povo nesse momento de crise e ao mesmo tempo resistir para evitar retrocessos sociais e institucionais, como as agendas do presidente da República e de seu ministro da economia. Nessa perspectiva, a unidade de ação das oposições será fundamental para enfrentar esses desafios. Que a população de conscientize dos riscos que todos corremos e as oposições tenha bom senso para agir de modo unitário no combate a essa agenda desastrosa do governo.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”