Desde o processo de impeachment, os poderes da República se colocaram a serviço do mercado, inicialmente dividindo tarefas para implementar a agenda neoliberal e, posteriormente, manobrando para impedir que os “avanços reformistas” alcançados possam ser revistos, num movimento de afronta ao debate, à deliberação e à democracia.
No primeiro momento, antes mesmo da efetivação de Michel Temer na Presidência da República, houve uma espécie de acordo entre os três poderes no sentido de pôr em prática a agenda do Consenso de Washington, com a distribuição de tarefas entre eles.
Nesse arranjo, coube ao Poder Executivo a dupla tarefa de fazer a coordenação geral e propor a agenda de ajuste fiscal (corte de despesas e aumento de receitas extraordinárias); ao Legislativo foi delegada a atribuição de contribuir para a melhoria do ambiente de negócio (suprimir ou flexibilizar direitos, rever marcos regulatórios na economia e abrir a economia ao capital privado nacional e estrangeiro); e ao Judiciário, com seu ativismo judicial e autonomia para decidir quando julgar ou não as demandas judiciais, coube a missão de dar sustentação às medidas dos dois outros poderes.
Tiveram razoável sucesso nesse diapasão, com a aprovação de uma série de medidas do ajuste, como o congelamento do gasto público, a obtenção de receitas extraordinárias e também grandes renúncias fiscais, sob a liderança do Poder Executivo, tendo também aprovado, sob a coordenação do Poder Legislativo, a mudança em marcos regulatórios para retirar direitos, caso da reforma trabalhista, ou para entregar o patrimônio nacional, como no caso da Petrobras e outras estatais, além da chancela a todas essas medidas pelo Poder Judiciário. Até mesmo a atribuição ilegítima de status ministerial a acusados de crimes de corrupção foi chancelada pelo Judiciário, num claro episódio de assimetria de decisão sobre casos formalmente idênticos: no governo Dilma, o mesmo Judiciário, com o aval do STF, impediu a posse do ex-presidente Lula na Casa Civil.
No segundo momento – após o desgaste das duas denúncias contra Temer –, diante da proximidade da eleição e da incapacidade de entregar o que prometera ao mercado, especialmente a reforma da Previdência, os articuladores desse arranjo mudaram de tática e passaram a obstruir tanto o debate e a deliberação sobre temas que pudessem reverter o desmonte quanto impossibilitar a eleição de candidatos contrários a esse receituário, acelerando julgamento e condenando sem prova como forma de retirá-los da disputa presidencial.
Conjectura ou não, o fato é que os temas ou as vozes que possam criar dificuldades ou interromper a trajetória de desmonte do Estado têm sido eliminados do debate ou da possibilidade de deliberação, numa completa negação do direito de participação das pessoas e das instituições. A judicialização da política, nesse processo, revela a sua face mais autoritária e dura.
Adota-se a tática da não decisão, que consiste em evitar que um potencial candidato possa concorrer ou temas que façam parte dessa agenda possam ser objeto de deliberação, facilitando a vida de quem eventualmente possa ser contrariado com uma decisão decorrente do sufrágio, do debate ou da deliberação.
Alguns exemplos ilustram o que se afirma acima, conforme detalhado em artigo de Celso Napolitano, presidente do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), publicado no portal da entidade.
“O primeiro exemplo desse tipo de tática – patrocinado pelo Poder Executivo, com a chancela do Legislativo – ocorreu com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que impede que o Estado possa gastar além do que gastou no ano anterior, corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA), mesmo que seja para salvar vidas. A referência para o gasto deixar de ser a receita e passar a ser o que se gastou no ano anterior.
A limitação de gasto, entretanto, não alcança as despesas financeiras. Assim, se a receita aumentar em bilhões de reais, esse aumento só poderá ser utilizado para abater eventuais déficits nas contas públicas ou para pagar juros ou o principal das dívidas internas e externas.
O segundo exemplo – operacionalizado pelo Ministério Público e pelo Judiciário, apoiado em delação premiada – diz respeito ao julgamento do ex-presidente Lula, cuja condenação sem provas poderá impedir sua candidatura à Presidência da República.
A exclusão de um dos candidatos, do campo popular, com reais chances de derrotar a agenda neoliberal em curso – feita em nome da moralidade – pode até não ter essa intenção, mas tem o condão de evitar qualquer obstáculo ao desmonte do Estado e facilitar a eleição de algum candidato identificado com o ideário liberal e fiscal de interesse do mercado.
O terceiro exemplo – praticado na Câmara dos Deputados – foi o arquivamento, a pedido do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da Reforma Trabalhista, de todos os projetos de lei em tramitação na Câmara que pudessem rever qualquer dos dispositivos alterados pela Lei no 13.467/17, inclusive projetos que vieram do Senado e os que foram apresentados posteriormente à publicação da norma.
Entre os projetos que foram arquivados, por exemplo, estão os projetos de lei do senador Paulo Paim (PT-RS) que tratam da estabilidade do dirigente sindical e da regulamentação da contribuição negocial em favor das entidades sindicais, num completo desrespeito à iniciativa legislativa dos parlamentares.”
Acrescento um quarto exemplo, que foi a manobra de intervenção na segurança do estado do Rio de Janeiro, como forma de evitar a derrota da reforma da Previdência, que o governo tinha prometido ao mercado aprovar até final de fevereiro.
Como não tinha votos para tanto e vendo o estado calamitoso da segurança pública no Rio de Janeiro, encontrou o álibi perfeito para evitar que as forças de oposição o derrotassem na votação da Previdência, promovendo a intervenção, porque durante sua vigência são proibidos quaisquer debates ou deliberações de temas objeto de emenda à Constituição.
Há até quem ache que, frente à dificuldade de eleger um presidente da República comprometido com a agenda neoliberal, os integrantes desse arranjo possam manobrar para adiar a eleição de 2018, ganhando tempo para, mediante a compra e a prorrogação dos mandatos dos atuais congressistas, concluir o desmonte do Estado, tendo como primeira pauta a reforma da Previdência.
A essa altura dos acontecimentos não se pode duvidar mais de nada, afinal as forças de mercado não querem perder essa quarta oportunidade de desregulamentar nossa Constituição, retirando dela as garantias sociais e a proteção do patrimônio público, já que tentaram sem sucesso em três outras oportunidades: na própria Constituinte, através do “centrão”; na revisão constitucional, por meio dos 81 pareceres do relator, então deputado Nelson Jobim; e nos governos FHC.
Para tanto estão dispostos a tudo, inclusive proibir o direito de participação, de sufrágio e de debate, já que têm dificuldade para executar essa agenda dentro do jogo democrático. O ambiente moralista justiceiro em vigor ajuda a esconder tais manobras, porque boa parte das pessoas está movida pelo rancor e pelo sentimento de vingança.
É preciso ficar atento e denunciar essas manobras, que negam a democracia e favorecem o capital em detrimento do trabalho, aumentando a desigualdade. E desigualdade nada mais é do que a diferença entre o crescimento da riqueza do capital e a renda do trabalho.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap