Passadas as eleições municipais – que claramente derrotaram o ideário Bolsonarista de confronto e negação da ciência, optando pelo equilíbrio, a experiência e a segurança – o desafio das forças progressistas para 2021 será impedir o desmonte das instituições de freios e contrapesos e das políticas sociais construídas desde a Constituição de 1988, especialmente os sistemas nacionais, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Nacional de Assistência Social (Suas), que, juntamente com a Previdência Social, formam o tripé da Seguridade Social. Foram os partidos progressistas e os movimentos sociais que propuseram e sustentaram esses modelos de políticas públicas e que agora têm a obrigação de evitar que o governo Bolsonaro destrua esses sistemas de políticas sociais.
Antes da entrada do Centrão para base e durante a pandemia, para o bem do Brasil, o governo Bolsonaro não teve força política para revogar ou desmontar as instituições criadas pela Constituição nem os sistemas nacionais de políticas públicas criados por lei, embora tenha conseguido paralisar seu funcionamento parcialmente, tanto por ações quanto por omissões deliberadas. A institucionalização de mecanismos de freios e contrapesos, anteriores à gestão atual, tem conseguido segurar seu ímpeto destrutivo, ainda que não tenha conseguido impedir ações de competência exclusiva do poder Executivo, especialmente aquelas em nível infralegal, como portarias, orientações, instruções normativas e atos declaratórios, cuja vigência independe da aprovação do Congresso Nacional, com efeitos deletérios sobre políticas públicas que conflitam com a visão atrasada e reacionária desse governo de extrema-direita.
No período pós-pandemia, entretanto, as políticas públicas com grandes dispêndios, como as do grupo da Seguridade Social, serão alvos prioritários do ajuste fiscal, dentro da lógica de conter o gasto público não financeiro como forma de honrar os compromissos com os credores ou detentores de título da dívida pública, e sob o argumento de que o controle das contas púbicas é indispensável ao controle da inflação e à retomada dos investimentos privados.
Nessa perspectiva, a pressão do governo e do mercado financeiro pela aprovação de instrumentos que facilitem o ajuste pelo lado da despesa, tende a se intensificar. As proposições para atender a esse intento já estão postas, são as Propostas de Emenda à Constituição (PECs) nº 186 e 188/2019, que tramitam no Senado e tratam da efetividade do teto de gasto e da regra de ouro, e a PEC 32/2020, da reforma administrativa, que tramita na Câmara dos Deputados. Elas criam instrumentos de controle de gastos permanentes, que não apenas impedem a expansão dos atuais gastos sociais, como também reduzem seus efeitos, mediante gatilhos que autorizam o congelamento e o corte de despesas permanente que não seja de natureza financeira, além de abrir caminho para o desmonte de estruturas estatais de produção de bens e prestação de serviços públicos, inclusive sem a apreciação do Congresso Nacional.
É preciso destacar que a crise fiscal e econômica do pós-pandemia ainda não foi devidamente mensurada. A perda de receita dos governos tende a agravar a capacidade de financiamento dessas políticas públicas, tanto pela desregulamentação das relações de trabalho, que intensificou o trabalho remoto e por plataforma, quanto pela recusa do governo em rever o sistema tributário. Acresça-se ainda que a desorganização governamental para sair do período de pandemia vai atrasar a retomada das atividades econômicas, com a ampliação do desemprego, que tende a aumentar significativamente no primeiro trimestre do próximo ano, quando terá acabado a estabilidade daqueles trabalhadores que reduziram jornada ou suspenderam o contrato de trabalho durante a pandemia. Além disso, a atividade econômica deverá sentir os efeitos da extinção do Auxílio Emergencial, que se não for renovado, e com o agravamento da segunda onda da Covid-19, ampliará a pobreza a níveis assustadores.
Essa realidade fiscal e econômica, de um lado, e a pressão por reformas que reduzam a capacidade do governo de proteger os atingidos pela crise, de outro, tendem a criar um caldo de cultura propício a desorganização e convulsão social, especialmente diante de um governo insensível, do ponto de vista social, e disfuncional e incompetente, do ponto de vista operacional. A contradição do governo Bolsonaro, que pretende disputar a reeleição, é que a retomada do crescimento econômico, pela lógica do mercado e de sua equipe econômica, dependa da redução do gasto estatal, tanto o que mantém a máquina funcionando quanto o que se destina às políticas sociais. E como a redução do gasto atinge boa parte do eleitorado, não parece razoável esperar que esse eleitorado seja masoquista a ponto de reeleger seu principal algoz.
É nesse contexto que se torna fundamental a articulação e a unidade de ação das forças progressistas, tanto na sociedade quanto no Parlamento, para evitar esse retrocesso nas políticas sociais. Os parlamentares do campo popular devem utilizar todos os recursos à disposição para impedir a aprovação daquelas PECs no formato apresentado, seja mediante negociação com candidatos à Presidência das Casas do Congresso, exigindo compromisso de independência em relação ao governo e de debate democrático sobre os temas de grande repercussão, como as PECs mencionadas, seja fazendo uso da obstrução, quando necessário. Os movimentos sociais, especialmente o sindical, também precisam se pautar pela unidade de ação e retomar as mobilizações em favor das causas comuns, como a rejeição ao desmonte do Estado e das políticas públicas.
Assim, desenvolver propostas e argumentos, sobretudo em torno da reforma do sistema tributário, que chamem a atenção para os privilégios fiscais daqueles que vivem do ganho de capital e dos que recebem incentivos e renúncias fiscais sem gerar emprego e renda para a população, tendo como contraponto aqueles que vivem do salário, de aposentadorias e pensões ou de benefícios, serão os grandes desafios para vencer essa batalha política e de narrativa. A conversa fiada de que as reformas com corte de direitos geram empregos já não enganam mais ninguém, especialmente depois das reformas trabalhistas e previdenciárias, que prometiam gerar milhões de empregos e fizeram o inverso.
O ano de 2021, portanto, será de travessia. Se conseguirmos impedir o desmonte do Estado de Bem-Estar Social, evitaremos tanto a reeleição de Bolsonaro quanto o risco de que o futuro presidente, se não for do campo popular, dê continuidade às tentativas de demolição das instituições de freios e contrapeso e das políticas públicas de proteção social. Assim, o próximo ano será desafiador na perspectiva de impedir retrocessos, já que as finanças públicas, por pura responsabilidade do atual governo, estarão em frangalhos, o que poderia justificar algum tipo de ajuste fiscal. O desafio das forças do campo popular e democrático, portanto, é evitar que esse eventual ajuste recaia sobre as políticas sociais ou sobre os assalariados, cuja renda tem natureza alimentar.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”