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Apesar de previsões otimistas de que haveria uma nova relação Estado-Sociedade, superada a pandemia, não há sinalização por parte dos liberais e, muito menos, da extrema-direita de que poderão alterar o paradigma de economia de mercado

Alguns alicerces do neoliberalismo foram abalados pela crise econômica de 2008/2009 e continuam sob pressão com a atual pandemia do coronavírus, particularmente o livre comércio, os investimentos externos diretos e a integração econômica. Contudo, outros sustentáculos do sistema como o capital financeiro internacional e a política prosseguem sem grandes alterações.

Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), a queda no volume de comércio em 2020 será entre 13% e 32%, a depender das medidas governamentais adotadas para enfrentar a pandemia e reativar as economias nacionais, embora dificilmente os países membros da OMC retomem a liberalização comercial da forma tradicional. Em épocas de crise, o protecionismo e o mercantilismo costumam se destacar, e nos últimos meses ficou evidente que muitos países e empresas não querem depender exclusivamente de importações para suprir suas cadeias produtivas e tudo farão para gerar superávits comerciais. E isso não se refere somente a produtos médicos e farmacêuticos, mas também a autopeças e outros componentes necessários para as montagens finais de bens. A OMC registra que mais de 80 países no mundo já criaram medidas restritivas ao comércio, particularmente de produtos médicos, farmacêuticos e de higiene.

Esse quadro é coerente com as quedas nos produtos internos brutos (PIB) dos países, em função das quedas locais de consumo e produção, fruto do desemprego, das reduções da renda das populações e dos efeitos das políticas de austeridade que ainda vitimizam vários países. A única área em que há crescimento do comércio é aquela que ocorre por meios digitais (e-commerce), mas ainda assim ele é prejudicado pela precária prestação de serviços dos meios de informática e comunicação, bem como dos serviços de entrega que não estavam preparados para a alta substancial dessa demanda que, na opinião dos especialistas, veio para ficar e exigirá da OMC a definição de uma regulamentação internacional.

A própria OMC já vinha demonstrando dificuldades em cumprir seus objetivos. A Rodada Doha, iniciada em 2001, até hoje está paralisada. O governo dos EUA vem vetando a reposição de juízes das instâncias de solução de controvérsias sob a alegação de que suas decisões sempre contrariam os interesses estadunidenses, o que obviamente ocorre porque os EUA são violadores contumazes das normas da organização que eles mesmos ajudaram a aprovar. O atual diretor geral da OMC, o brasileiro Roberto Azevedo, anunciou que se retirava da entidade um ano antes de concluir seu mandato, deixando mais um problema que é o de resolver sua sucessão no meio da atual crise mundial.

Some-se a isso a disputa entre EUA e China, que não é uma mera competição comercial e sim uma disputa pela hegemonia que envolve várias questões, particularmente quem terá o controle da tecnologia digital 5G e quem terá a maior influência geopolítica na Ásia e nas áreas afins. Além disso, 2020 é ano eleitoral nos EUA, e os dois principais candidatos, Donald Trump e Joe Biden, competem para ver quem é mais duro em relação à China, pois a perda de espaço econômico para esse país também preocupa a opinião pública estadunidense. Não se conhecem ainda os desdobramentos dessa disputa, mas evidentemente as restrições bilaterais prejudicam o fluxo geral do comércio, e a introdução de barreiras comerciais tende a incentivar a produção local e não necessariamente abrir caminho para novos parceiros, o que seria a expectativa do Brasil, principalmente quanto à exportação de produtos agropecuários para a China no lugar dos EUA.

Embora a balança comercial do Brasil apresente superávit desde 2015, este vem caindo, a partir de 2017, e deverá fechar em seu nível mais baixo dos últimos anos em 2020 – só não será pior devido aos produtos primários que já respondem por mais de 60% da pauta de exportações.

Os investimentos externos diretos (IED), segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês), sofrerão uma queda de até 40% entre 2020 e 2021, atingindo o volume mais baixo em duas décadas, o que jogará mais lenha na fogueira da crise, pois para muitos países o IED é a fonte que ajuda a equilibrar as contas externas, sem falar na contribuição para gerar novos postos de trabalho, quando não se trata de investimentos em portfólios ou simples aquisições.

Outra área abalada é a integração econômica, exemplificada pela situação da União Europeia (UE). Primeiro foi o Brexit, e agora uma decisão da Suprema Corte de Justiça da Alemanha. A Comissão Europeia apresentou uma proposta de contribuição de 750 bilhões de euros, exclusivamente para apoiar a recuperação econômica pós-pandemia, além do orçamento normal do bloco, recursos que têm que ser aprovados por consenso pelos países membros da UE. O lastro dos recursos extras seria a emissão de ações do Banco Central Europeu (BCE), os “Eurobonds”. No entanto, a suprema corte alemã, instigada por banqueiros desse país e por integrantes do Partido Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita e eurocético, decidiu que o BCE teria que limitar a emissão de ações para valores muito menores e consequentemente a contribuição alemã também se reduziria. O problema é que essa decisão incide sobre uma política regional e não apenas nacional. Se isso vingar, nenhum membro da UE precisará obedecer as decisões comunitárias nem cumprir seus compromissos financeiros, basta conseguir uma sentença que lhe convenha num tribunal nacional, o que coloca a existência do bloco e da moeda única em sério risco.

Quando a pandemia se iniciou e deixou claras as consequências maléficas das políticas de Estado mínimo para as políticas de saúde, iniciou-se um debate com previsões otimistas de que haveria uma nova relação Estado-Sociedade, uma vez superada a pandemia. Seria um desdobramento lógico e racional. Porém, essa será uma luta árdua, se considerarmos o poder do sistema financeiro global que vem, inclusive, se apropriando de uma parte importante dos recursos despendidos pelos governos para enfrentar os efeitos da pandemia e aplicando-a na especulação financeira, além de não haver sinalizações por parte dos liberais, e muito menos da extrema-direita, de que poderão alterar o paradigma de economia de mercado.

 

Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais