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MPB galvanizou a resistência à ditadura, novos comportamentos, experiências estéticas e musicais muito diversas

Correndo o risco de estar um ano atrasada, esta coluna quer chamar a atenção para 1967, quando todos os pescoços se voltam para 1968. Quase todas as memórias de 1968 apontam o extraordinário momento que vivia a música brasileira – ou, ainda, uma certa música brasileira – e uma delas, aquela cujo nome é a base do trocadilho que dá título ao artigo, acabou por se tornar uma espécie de hino daquele período. Parte por seu tom épico-sentimental, parte pela burrice da repressão, “Caminhando” ficou como o símbolo de uma era, cujo poder evocativo se estendeu, inclusive, nas manifestações e passeatas pela retomada das lutas democráticas nos anos 1970. (Quem nunca se arrepiou ouvindo o “vem, vamos embora” em praça pública que atire as primeiras flores. Ou canhões, a gosto.)

Mas aquilo que aconteceu ali, no palco, em 1968, com um Geraldo Vandré entre messiânico e paranóico, teve seu ponto de ebulição um ano antes, em 1967. Foi naquele ano que se deu o curto-circuito do qual sairia uma das mais poderosas operações estético-ideológicas da cultura brasileira, a criação da MPB. Aqui, cabem algumas explicações.

Por operação entenda-se que, naquele momento, aconteceram diversas ações, algumas mais espontâneas, outras mais calculadas, protagonizadas por personagens muito diferentes (e, por vezes, em posições francamente antagônicas), todos brigando mais ou menos pela mesma coisa: definir, para um público novo e ávido, o que era a música popular e brasileira. Mas, classificando o que aconteceu em diversos palcos e frentes de batalha, como operação também se quer afirmar que havia ali uma certa clareza de intenções, o que torna tudo mais interessante, ao mesmo tempo que complicado.

Quais eram essas frentes de batalha? O teatro da guerra eram os vários programas com atrações musicais e os festivais da canção, estratégia montada pelas emissoras de TV para atrair jovens para o veículo e tirá-lo de sua condição de eletrodoméstico de luxo. Ali, se encontravam os também jovens compositores e intérpretes de pelo menos três vertentes. Uma era próxima musicalmente da bossa nova e também de outras tradições musicais, como o samba de morro e as modas nordestinas, mas acreditava em letras de denúncia e de intervenção. Numa ponta oposta, havia uma cena construída a partir de uma tradução de pé-quebrado do pop romântico angloamericano, mas que começava a alçar vôos mais autorais.

Aterrissando como uma nave louca, um grupo heterogêneo juntava jovens baianos talentosos, músicos de extração erudita e filiação concretista a um grupo paulistano de rock numa espécie de atualização pop da antropofagia oswaldiana.

E não era só isso. Ao lado dessas vertentes principais, vários artistas, de perfil mais autônomo, corriam por fora, alinhando-se ou desalinhando-se com um ou outro desses grupos – Chico Buarque, Milton Nascimento, Jorge Ben etc.

Com mais de 40 anos de distância, é preciso desfazer alguns equívocos. Um historiador e crítico de música conservador, como José Ramos Tinhorão, tende a ver esse momento com muito pessimismo. Quando aparentemente o nacional-popular foi “derrotado” pelo tropicalismo e pela jovem guarda, a música estaria se afastando definitivamente do popular e do brasileiro.

No entanto, foi a conciliação entre o “protesto” e as guitarras elétricas que se amalgamou na sigla (bem ao gosto da época) MPB. Claro que Tinhorão não reconhece aquilo que se chama de MPB como a música verdadeiramente popular e brasileira – e, aqui, tendo a concordar com ele. Ao final da era dos festivais, dos violões quebrados e das vaias, aprisionaram-se todas as formas do popular e do brasileiro num conjunto mais ou menos restrito de significados.

Apesar de denunciar uma certa arrogância coletiva, a operação foi de enorme significado cultural e político, além de um sucesso de mercado. Nos anos 1970, a MPB galvanizou simultaneamente a resistência à ditadura, os novos comportamentos existenciais, experiências estéticas e musicais muito diversas e embalou os amores, os sonhos e as fossas de quem estava lá.

Bia Abramo é jornalista