As mudanças no mundo do trabalho, decorrentes da exacerbação do neoliberalismo, têm um impacto civilizatório ou, para ser mais preciso, anticivilizatório. Digo civilizatório no sentido de uma nova cultura. Um novo modo de estar no mundo vai se naturalizando sem que os próprios atores se deem conta disso.
A mim impressiona muito quando deparo com meninos pedalando precárias bicicletas no infernal trânsito das grandes cidades, com sandálias havaianas, carregando um monturo às costas, doidos pra chegar ao destino da entrega, e recolher alguns tostões, e sair dali correndo para chegar a outro destinatário.
Ou assistir a centenas de motos ziguezagueando no trânsito, muitos morrendo, em velocidades inimagináveis, doidos para buscar o pão suado de cada dia.
São exemplos, os das motos e bicicletas.
Apenas revelam a mudança mais profunda nas relações de produção capitalistas, a uberização do mundo.
Em meio a um cenário de predomínio do capital financeiro, emerge a superexploração do trabalho sob as mais variadas formas, fazendo desfilar multidões de trabalhadores completamente desassistidos, sem qualquer previdência, sem aposentadoria, sem atendimento médico, sem horário de trabalho fixo, expostos a jornadas intermináveis fixadas por eles próprios.
O capital, antes responsável de alguma forma por eles, obrigados a garantir alguma aposentadoria, alguma previdência, e só obrigados graças a lutas seculares dos próprios trabalhadores, agora tem a chance de livrar-se dessas amarras, e o faz de modo cada vez mais veloz, e numa escala impressionante, a abarcar grande parte do mundo.
E o pior: tal mudança, de alguma forma, encontra amparo numa ideologia insidiosa, capaz de fazer trabalhadores acreditarem-se empresários de si mesmos, responsáveis pelo próprio destino, pelo sucesso ou derrota, o capital sempre anistiado.
Essa, a crueldade, a perversidade, a instauração da nova subjetividade capitalista, como chamada por Pierre Dardot e Christian Laval, para quem a sociedade neoliberal implantou a nova razão do mundo.
Num livro inspirado, de 2016, percebe-se o notável esforço teórico de desmontar os mitos sobre o empreendedorismo e desnudar as artimanhas ideológicas do capital na tentativa de sustentar as novas formas de exploração do capitalismo na sua etapa neoliberal.
Os autores provocam essa reflexão. Minha preocupação é principalmente com o fenômeno da ideologia do empreendedorismo, com a arquitetura ideológica destinada a erigir o trabalhador em empresário, jogando-lhe sobre as costas a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso da existência, ensejando a criação de uma nova subjetividade.
Tal ideologia atingiu profundamente a consciência dos trabalhadores, a milhões deles, incapazes de se verem vítimas de uma desenfreada exploração, enredados numa teia subjetiva de culpa.
Sentem-se inteiramente responsáveis pelo que lhes aconteça, não encontrando no agora fantasmagórico empresariado a responsabilidade pela exploração. Como é empresário de si mesmo, tudo diz respeito a si próprio. Diariamente são bombardeados por uma gigantesca máquina publicitária, a convencê-los de sua capacidade de tocar sua própria empresa, a partir de uma pequena iniciativa que seja. De um pequeno empreendimento, você pode obter sucessos, fazer milagres. Caso não consiga, tente de novo. Não conseguindo, responsabilidade é sua.
O fracasso é do empreendedor, sempre. São milhões de trabalhadores em todo o mundo envolvidos nessa mistificação.
Ao sofrimento do excesso do trabalho, acrescenta-se o tormento psíquico. Dedica-se de modo brutal à empresa, e tudo é empresa, e o retorno é precário, sempre. Não penso apenas nos miseráveis, nos trabalhadores montados em bicicletas, nas motos, correndo atrás de tostões para sustentar a si próprios e famílias.
Penso também nas pequenas empresas, os patrões de si mesmos, crentes num futuro melhor, sem feriado ou domingo ou sábado. Qual Sísifo levanta cada dia sem ver a vida se modificar. Olha para a tevê, para as redes sociais, e assiste as promessas se repetirem, como se o empreendorismo fosse a salvação do mundo.
Diariamente, quisermos pensar no Brasil, é possível assistir à Rede Globo e as demais redes engrossando essa mistificação, diariamente.
Desemprego?
Ora, o desemprego.
Há sempre o caminho do empreendedorismo.
Passava os olhos no Estadão de ontem, 14/8/2022.
Basta a manchete para o leitor compreender o destino dos empresários de si mesmos no Brasil atual: “Quase 90% dos empreendedores não têm funcionários e metade ganha só um salário mínimo”.
E eles sentem-se culpados pelo fracasso.
Mal sabem, e está tudo lá no livro de Pierre Dardot e Christian Laval: a ideia do empreendedorismo nasceu nas origens da ideologia neoliberal – quem quiser procure a publicação, vale a pena. Os pais do neoliberalismo, desde os anos 1930 ao menos, já haviam descoberto a pólvora: o empreendedorismo seria essencial como parte dos novos mecanismos de dominação e exploração, envolvendo, como já dito, uma nova e perversa subjetividade.
Eles venceram. Ao menos até agora.
O neoliberalismo, como dizem os dois autores, é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade.
Cada indivíduo, na ideologia neoliberal, desde o nascedouro, deve desfrutar das garantias oferecidas pela pequena empresa. Melhor: cada indivíduo deve funcionar como uma pequena empresa.
Desproletarizar as massas desenraizadas pelo capitalismo industrial não é torná-las seguradas socialmente, mas sim garantir venham a ser proprietárias, poupadoras, produtoras independentes.
A teoria neoliberal massacra a intervenção do Estado ao elevar o papel do empreendedorismo, e procura elevar ao máximo a responsabilidade individual. Quanto mais o Estado cuidar de nós, menos inclinação teremos para agir por nossas próprias forças.
Trata-se de moldar os trabalhadores a entrarem no processo permanente da concorrência – permanente crueldade. O mercado é o deus-garantidor do bom funcionamento da sociedade. Pelo caminho, perecem os incapazes de suportar o tranco da concorrência, o tranco do mercado.
Trata-se, pelo processo da luta ideológica e pelas técnicas e dispositivos disciplinares, de obrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob a pressão da competição.
Resta à política progressista, democrática e de esquerda, examinar como responder a tal quadro, a tal aceleração ideológica.
É um quadro assustador, sob todos os ângulos – no estrutural, na exploração do trabalho, e na constituição de uma nova, insidiosa subjetividade.
A quem estiver à frente de governos, há de combinar o pensamento estratégico e o tático. Pensamento capaz de olhar sempre o horizonte, sem perder de vista as contingências do momento.
No planto da política imediata, procurar fortalecer, em primeiro lugar, as iniciativas voltadas a formas econômicas associativas, comunitárias, não vinculadas exclusivamente ao lucro.
Desenvolver políticas capazes de garantir sustentação aos pequenos e médios negócios.
E travar a luta político-cultural no sentido de constituir uma visão apropriada sobre esse novo mundo do trabalho, de modo a contribuir para uma consciência em torno da superexploração do capital, retirar o véu a encobrir tal superexploração.
Não descuidar de desmontar o mito da concorrência como único motor da existência.
Caminhar no sentido de uma nova visão de mundo, voltada ao coletivo, não apenas no individual.
Tentar encontrar formas associativas desse novo mundo do trabalho, aptas a resistir, e a buscar os caminhos opostos ao neoliberalismo, abrir horizonte em direção a uma nova sociedade, na linha da superação desse modo de produção fundado exclusivamente na concorrência.
Óbvio: não basta a crítica a essa tentativa de fazer do empreendedorismo a salvação da lavoura.
Ter também uma política de desenvolvimento capaz de estimular o emprego, e emprego com bons salários.
E seguir insistindo com a arma da crítica.
Desmontar as ilusões, combater as mistificações.
Referência
DARDOT, Pierre. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal / Pierre Dardot; Christian Laval: tradução Maria Echalar. Primeira edição. São Paulo: Boitempo, 2016
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (dois volumes), entre outros