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O partido não nasceu para fazer mais do mesmo. Cresceu e se desenvolveu para lutar por outro mundo. E sabe: pela luta, outro mundo é possível

O PT acumula uma história de compromisso com o povo brasileiro, especialmente com a classe trabalhadora. Nasceu em um cenário de combate à ditadura, ela já nos estertores mas ainda violenta. Comemora neste 10 de fevereiro 41 anos de existência. Surgiu num cenário internacional de início da ascensão do neoliberalismo e da decadência acelerada da URSS. Conjuntura de muitos desafios. Afrontava, no nascedouro, direita e esquerda: a direita porque um partido de trabalhadores era um risco ao domínio autoritário, e a esquerda porque uma parte dela considerava o surgimento uma forma de dividir as oposições.

Nasce sob o impulso do movimento operário renovado do ABC, onde já despontava a liderança de Lula, das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica e de egressos da resistência à ditadura, especialmente dos defensores do caminho armado, agora começando a se situar no campo institucional, democrático. O socialismo, seu norte. Não embarca na ditadura do proletariado. Defende a luta democrática como estratégia para a chegada ao poder e para a permanência nele. Ventos gramscianos, talvez. Num primeiro momento, desacostumado à luta institucional, à complexidade da política, situa a luta exclusivamente entre burguesia e proletariado. Depois, vai compreendendo o quanto as alianças são imprescindíveis, a hegemonia se consolida em meio a elas.

Dou um salto e chego a 2002. O partido compreende definitivamente a complexidade da estratégia democrática, a imperiosidade de alianças amplas num país tão marcado por privilégios e exclusões centenárias, sobretudo por mais de três séculos de escravidão. O sapo barbudo, na definição de Brizola, disputaria a quarta eleição à Presidência. Era vencer ou vencer. Venceu. Nunca na história desse país um partido conseguiu liderar um processo tão intenso de transformações como o vivido entre 2003 e 2014, dois mandatos de Lula e o primeiro de Dilma. Houve melhorias reais nas condições de vida do povo, houve distribuição de renda, políticas públicas voltadas às maiorias. O segundo mandato da presidenta Dilma foi cercado desde o primeiro momento, até chegar a 2016. A direita brasileira, até ali incapaz de vencer nas urnas, recorria ao golpe.

Talvez o partido nesses anos de governo, tão vitoriosos, tenha deixado escapar a noção do quanto a luta pela hegemonia exige combate cotidiano, luta política e cultural, cuidado com corações e mentes, atenção à ideologia, às religiões. Nem sempre melhorias nas condições materiais, inegáveis durante o período, são suficientes. Talvez, aqui, se reclamasse um conhecimento mais profundo da perspectiva gramsciana. Não tentou reforma política, de meios de comunicação, descuidou-se da relação com as massas.

A guerra de posições não permite descanso. Para dar o passo seguinte, passar de uma trincheira a outra, é preciso trabalhar corações e mentes. Senão, corre-se o risco de o inimigo avançar, ainda mais num país de tradição autoritária e golpista como o nosso. Avançou, preparou o bote, deu o primeiro passo em 2016. Caminho facilitado, veio o segundo pelo voto, em 2018, dessa vez com a vitória da extrema-direita, surpresa apenas para quem não acompanhava o movimento do mundo naquela conjuntura. Em momentos de crise de hegemonia, os monstros mostram a cara. O velho está morrendo, o novo não pode nascer, e aparecem os sintomas mórbidos referidos por Gramsci, ele de novo. Também no Brasil ocorreu.

Neste aniversário, o partido se defronta com a conjuntura de um governo de extrema-direita, eleito pelo voto. Sabe da complexidade. Como consequência de nossas falhas e como resultado de nossa história secular de opressão e da disseminação da ideologia da servidão voluntária, aqui me valendo de conceito desenvolvido por Marilena Chaui, tudo isso facilitado por nossos meios de comunicação empresariais. O atual presidente consegue ainda manter mais de um terço de aprovação, a indicar uma luta dura pela frente no plano político-cultural-ideológico. Os últimos movimentos do presidente revelaram surpreendentes manobras políticas, a lhe garantir o controle das duas principais casas legislativas, e a dificultar o impeachment.

O PT tem desenvolvido um discurso amplo, procurando garantir, como principal partido de oposição, a unidade das forças de esquerda. Nada é simples. Os vários partidos têm seus programas e interesses, tudo legítimo. Acionar Fernando Haddad para se colocar na cena como candidato também é legítimo, como o fazem Flávio Dino, Guilherme Boulos, Ciro Gomes, Requião, entre outros. Essa esquerda, esses candidatos, sabem da necessidade de elaborar um programa capaz de sensibilizar o povo brasileiro, massacrado pelas políticas do atual governo, enfrentando a fome, a miséria.

O PT sabe disso, e já se debruçou sobre nossa realidade, elaborando, via Fundação Perseu Abramo, um primeiro diagnóstico da crise, e desenhando caminhos. Resta conversar, dialogar, e muito. Examinar qual o melhor caminho para o enfrentamento de 2022, considerando, salvo surpresas, a impossibilidade do impeachment. É possível unir toda a esquerda numa candidatura? Necessário dialogar e decidir qual a melhor estratégia. Não creio seja a da divisão. Prefiro a ideia de o máximo de unidade desde o primeiro turno.

Estamos à beira de uma decisão face à candidatura de Lula. Comenta-se a possibilidade de uma estranha decisão do Judiciário: inocentaria o ex-presidente em face de todos os crimes da Lava Jato, mas não o deixaria ser candidato. Será? Tão absurdo, custoso de acreditar, mas bruxas existem.

Uma coisa é Lula com todos os seus direitos recuperados. Ele candidato poderia ser a chance de recuperarmos o governo do Brasil, retomar os direitos das maiorias, colocar novamente o país na cena mundial. Se não for, trata-se de encontrar caminhos para o enfrentamento da extrema-direita e da chamada direita civilizada, cujas convicções acompanham Paulo Guedes e seu ideário neoliberal até o inferno. O chamado centro brasileiro é neoliberal tanto quanto a extrema-direita.

Ao PT, nesse aniversário, cumpre responder outro desafio nessa conjuntura complexa e de defensiva. Como vincular a luta democrática com a luta pelo socialismo, indissociáveis em seu programa? Fazer as indispensáveis alianças sem desfigurar-se. Fixar um programa em que se prevejam transformações de fundo destinadas a garantir o protagonismo dessa classe trabalhadora profundamente transformada na vida política do país. Garantir renda e mudanças nas concepções ideológicas e culturais, nunca possíveis por quaisquer caminhos autoritários. Não há, na conjuntura, sinais de uma luta de curto prazo. Por isso, é fundamental não perder de vista a vinculação entre tática e estratégia, cotidianamente.

Digo da luta de longo prazo por conta especialmente do processo de destruição do país, desfiguração e aniquilação das políticas públicas acumuladas durante os nossos governos, da retirada de direitos, da submissão aos EUA, de nossa perda de poder no cenário internacional, na entrega de nossas estatais na bacia das almas, do ataque concentrado à Petrobras.

Levará muito tempo para nos recuperarmos, mesmo com a vitória em 2022. A extrema-direita e a direita sabem o quanto tem sido importante essa destruição. Têm clareza de seus objetivos estratégicos, precisam limpar o caminho para a afirmação do projeto neoliberal em sua forma mais extremada. O atual presidente foi claro: primeiro, destruir. Depois, o resto.  Por isso, no programa do partido para essa quadra histórica, compreender o momento, olhar a caminhada e, no meio das dificuldades e do exercício político, saber sempre aonde quer chegar.

Sei, não é fácil. Até porque não há modelos prontos de socialismo. O PT recusou o modelo do chamado socialismo real de então. Preferiu a construção do socialismo pela via democrática, talvez mais penoso. Obrigado a fazer política o tempo inteiro. Mas, se há nitidez de projeto, se há clareza na articulação entre o dia a dia político e a construção de hegemonia na direção de uma sociedade socialista, a caminhada tem mais consistência e está mais de acordo com nossa consciência voltada à construção de uma sociedade, em que se dê a cada um de acordo com suas necessidades e se peça a contribuição a todos de acordo com suas capacidades. O PT não nasceu para fazer mais do mesmo. Cresceu e se desenvolveu para lutar por outro mundo. E sabe: pela luta, outro mundo é possível.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol. ), entre outros