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Na perspectiva de pacificação do país, Lula terá de dialogar com o mercado, a sociedade e o Congresso Nacional, pautando-se pelo equilíbrio e pela calibragem ideológica

As eleições gerais de 2022, de caráter plebiscitário, foram realizadas num clima de forte polarização e de disputa de legados entre o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Além disso, foi uma eleição preponderantemente de rejeição, na qual o eleitor votou em um dos dois principais candidatos não porque o preferia, mas porque pretendia evitar a eleição do seu adversário. Ou seja, boa parte dos eleitores que votaram em Lula o fizeram por ser antibolsonarista, assim como boa parte dos eleitores que votaram em Bolsonaro o fizeram por ser antipetismo ou para evitar a eleição de Lula.

Em ambientes antagônicos como esse, não existia espaço para terceira via, e, como era esperado, os dois candidatos com experiência presidencial foram os mais votados no primeiro turno e disputaram o segundo turno, que foi vencido por Lula com 60.345.999 (50,90%) contra 58.206.364 (49,10%) de seu adversário. Foi o resultado mais apertado das eleições presidenciais desde 1989, tendo sido menor que o da eleição de 2014, na qual a ex-presidente Dilma foi eleita em 2º turno por 51,64% dos votos válidos.

No primeiro turno, o eleitor poderia escolher entre onze candidatos, mas optou por concentrar mais de 90% dos votos nos dois com experiência na Presidência da República e com visão antagônica sobre ciência, democracia e justiça social. A tabela a seguir traz o nome, o partido ou coligação de cada candidato, assim como a votação total e o percentual de votos de cada postulante à chefia do Poder Executivo.

Tabela 1 – Resultado do 1º turno

Candidato

Partido/coligação

Votos

Percentual

Luiz Inácio Lula da Silva

 

Federação Brasil (PT/PC do B/PV) Federação (PSOL Rede) e Solidariedade, PSB, AGIR, Avante e PROS.

57.259.504

48,43%

Jair Messias Bolsonaro

PL, PP e Republicanos

51.072.345

43,20%

Simone Nassar Tebet

 

MDB, Federação (PSDB/Cidadania) e Podemos

4.915,423

4,16%

Ciro Ferreira Gomes

PDT

3.599.287

3,04%

Soraya Vieira Thronicke

União Brasil

600.955

0,51%

Luiz Felipe Chaves D’Avila

NOVO

559.708

0,47%

Kelmon Luís da Silva Souza

PTB

81.129

0,07%

Leonardo Péricles Vieira Roque

UP – Unidade Popular

53.519

0,05%

Sofia Pádua Manzano

PCB

45.620

0,04%

Vera Lúcia Pereira da Silva Salgado

PSTU

25.625

0,02%

José Maria Eymael

DC – Democracia Cristã

16.604

0%

Fonte: TSE

 

Características da eleição presidencial

Essa foi uma eleição atípica, basicamente por quatro características: 1) um ambiente político completamente diferente do pleito de 2018; 2) uma disputa entre dois candidatos com forte base social e grande apelo eleitoral; 3) uma eleição em que houve a comparação de legados entre os dois principais candidatos com experiência presidencial; e 4) uma campanha baseada em desconstrução das candidaturas, com pouco foco em propostas.

O primeiro ponto, que aborda as diferenças entre os pleitos de 2018 e 2022, mostra a mudança no ambiente político nas duas eleições. Em 2018 o humor e o clima político eram completamente desfavoráveis ao PT, a começar pela ausência da candidatura de Lula naquele pleito.

Pelo menos quatro aspectos influenciaram fortemente o resultado contrário ao Partido dos Trabalhadores naquela eleição: 1) o ativismo judicial, a postura do Ministério Público e da Polícia Federal, no âmbito da Lava Jato; 2) um sentimento antissistema e antipolítica jamais visto no país, com enorme apelo por renovação política; 3) a prisão e a retirada de Lula da disputa, que era o principal nome do PT; 4) o episódio do atentado de Juiz de Fora, que vitimizou Bolsonaro na campanha. O quadro a seguir detalha melhor as diferenças entre as duas eleições.

Diferenças entre os pleitos de 2018 e 2022

Eleição de 2018

Eleição de 2022

Apelo por renovação política

Não existiu grande apelo por renovação política

Sentimento antissistema

Não existiu um sentimento forte antissistema

Lava Jato em plena ação

A Lava Jato foi desmoralizada e praticamente desativada por seus excessos

Dilma recém-destituída da Presidência

Temer reconheceu que a ex-presidenta era honesta e que foi cassada por razões políticas

Lula foi impedido de disputar a eleição

Lula recuperou os direitos políticos e um comitê da ONU e o STF reconheceram a parcialidade de seu julgamento pelo juiz Sérgio Moro

Haddad foi o candidato, pois Lula foi impedido de disputar e estava preso por acusação de corrupção

Lula foi o candidato e liderou as pesquisas para a disputa nos dois turnos da eleição presidencial

Mídia e grandes articulistas eram contra o PT

Houve reconhecimento de parte da imprensa de que foi um erro o

impeachment de Dilma

Bolsonaro não compareceu a debates

Bolsonaro não teve como se esconder e teve que prestar contas de seu mandato

Bolsonaro explorou ao extremo o atentado de Juiz de Fora

Bolsonaro não pode se apresentar como vítima, exceto o fato de alegar que a pandemia e a guerra na Ucrânia prejudicaram seu governo

A eleição presidencial teve impacto relativo nas eleições para o Legislativo, mas o partido do eleito elegeu a maior bancada na Câmara

A eleição presidencial teve impacto relevante nas eleições para o Legislativo, e o partido do derrotado em segundo turno elegeu a maior bancada na Câmara, governadores e senadores em estados importantes

 

Se na comparação do quatro acima a situação em 2022 não foi tão favorável ao candidato Bolsonaro, como em 2018, ele teve a vantagem de disputar no exercício do mandato, com forte uso da estrutura de poder. E, nas campanhas presidenciais de reeleições acontecidas no Brasil – a de FHC em 1998, a de Lula em 2006 e a de Dilma em 2014 –, nunca se fez uso tão abusivo da máquina pública quanto neste pleito de 2022.

No segundo ponto, a respeito da forte base social e apelo eleitoral de Lula e Bolsonaro, constata-se de fato que cada candidato partiu de um patamar de apoio em torno de 30% do eleitorado, além de disporem de condições na disputa e de estrutura de campanha praticamente equivalentes:  1) recursos financeiros, 2) tempo de rádio e televisão, 3) palanques fortes, e 4) influência nas redes sociais.

O terceiro ponto, sobre disputa de legados, demonstra que a situação foi em parte desfavorável ao atual presidente, especialmente pelo fraco desempenho de seu governo na economia e no enfrentamento à pandemia. Bolsonaro até buscou explorar a vacinação da população durante a Covid-19, o aumento do auxílio-brasil e a redução dos preços dos combustíveis, mas a população tinha conhecimento do caráter populistas dessas medidas. No caso das vacinas, elas só foram compradas porque houve pressão do Congresso Nacional e o então governador de São Paulo, João Doria, tinha saído na frente na vacinação da população de seu estado. Já as outras duas medidas – auxílio Brasil e preço dos combustíveis – foram claramente eleitoreiras, tendo sido adotadas no âmbito da chamada PEC da reeleição. Lula, por sua vez, explorou a criação de universidades e escolas técnicas, as políticas sociais e habitacionais, o aumento real do salário mínimo e a geração de emprego durante os seus governos.

O quarto ponto atípico, a propaganda negativa ou focada na desconstrução dos adversários, já era esperado, afinal em quase todo o mandado e durante boa parte da campanha Bolsonaro buscou apresentar o PT e as esquerdas como corruptas e inimigas das famílias e das igrejas.

Frente a isso, era natural que a candidatura Lula reagisse e buscasse atingir os três pilares que sustentavam o discurso de Bolsonaro: o moral, em relação à defesa das famílias; o religioso, em relação à defesa das igrejas; e o de probidade, relativo ao combate à corrupção. E o fez denunciando o caráter autocrático do governo e buscando recuperar denúncias de prática de corrupção, como a das chamadas rachadinhas e do enriquecimento injustificável da família do presidente, explorando as mortes que, na opinião da campanha de Lula, poderiam ter sido evitadas com a compra imediata das vacinas, além de expor as incoerências entre discurso e prática do presidente Bolsonaro e seu grupo político.

Em um ambiente desses, realmente não havia espaço para um debate sério a respeito de proposta. Bolsonaro foi imbatível no uso: a) da denúncia como arma política; b) da máquina pública em seu favor; c) de promessas impossíveis, numa postura complemente irresponsável do ponto de vista fiscal; d) das mentiras e fake news para mobilizar o eleitorado contra a volta da esquerda ao poder. Quem mais buscou apresentar propostas foi o candidato Lula, que tentou transmitir esperança e confiança ao eleitor. Esperança de que o status quo mudaria para melhor em eventual novo governo dele e de que ele e sua equipe seriam capazes de entregar o que prometia na campanha.

Agenda ou programa dos candidatos

A visão de mundo de Lula e Bolsonaro são absolutamente distintas, a começar pelo fato de o primeiro se situar à esquerda do espectro político e o segundo se enquadrar na extrema-direita. Como já mencionado, eles divergem sobre ciência, democracia e justiça social. Os temas prioritários do candidato do PT se situam na área social e na inclusão social, a partir de investimentos em educação e na geração de emprego e renda. Já os do candidato do PL se situam no campo dos costumes, na religião, no patriotismo, no armamento da população, na defesa da ordem e no combate à corrupção, sem maiores preocupações de natureza social, humanitária ou ambiental, como é próprio da extrema direita no mundo.

A abordagem na campanha igualmente foi distinta. Enquanto Lula priorizou a resolução de problemas, assumindo o compromisso de atender demandas da população por serviços públicos de qualidade e igualdade de oportunidades, sempre respeitando a democracia e a diversidade, Bolsonaro buscou utilizar as pautas de costume, religiosas e do combate ao “comunismo” como forma de mobilizar seus seguidores. Ou seja, apresentou diagnósticos negativos e apontou supostos culpados pela situação, mas não propôs solução para os problemas. Resumindo: Lula buscou discutir programa de governo e Bolsonaro fazer luta política.

Representatividade versus votos brancos, nulos e abstenção

Do total de eleitores habilitados a votar (156.454.011), 124.252.796 compareceram às urnas. Destes, 60.345.999 votaram no presidente eleito, o que corresponde a 48,57%. Ou seja, o presidente precisa ter em conta que o Brasil ficou dividido na eleição e, portanto, todo esforço deve ser no sentido de pacificar o país. O governo, para assegurar a governabilidade no Parlamento e apoio na sociedade, precisa calibrar suas propostas e dialogar com todas as forças políticas, inclusive aquelas que derrotou nas urnas, conforme está evidente na correlação de forças no Congresso Nacional.

Tabela 2 – Votos brancos, nulos e abstenções de 1989 a 2022

1º turno

Eleito

Collor

FHC*

FHC*

Lula

Lula

Dilma

Dilma

Bolsonaro

Lula

Ano da eleição

1989

1994

1998

2002

2006

2010

2014

2018

2022

Abstenção

11,93%

17,77%

21,49%

17,74%

16,75%

18,12%

19,39%

20,33%

20,95%

Brancos

1,63%

9,23%

8,03%

3,03%

2,73%

3,13%

3,84%

2,65%

1,59%

Nulos

4,81%

9,56%

10,67%

7,36%

5,68%

5,51%

5,60%

6,14%

2,82%

Total

18,37%

36,56%

40,19%

28,13%

25,16%

26,76%

29,03%

29,12%

25,36%

2º turno

Abstenção

14,40%

-

-

20,47%

18,99%

21,50%

21,10%

21,30%

20,59%

Brancos

1,40%

-

-

1,89%

1,32%

2,30%

1,71%

2,14%

1,43%

Nulos

4,42%

-

-

4,11%

4,71%

4,40%

4,63%

7,43%

3,16%

Total

20,22%

-

-

26,47%

25,02%

28,20%

27,44%

30,87%

25,18%

*Não houve 2º turno para presidente em 1994 e 1998

A alienação eleitoral – expressa pela abstenção e pelos votos brancos e nulos – no primeiro turno teve a terceira menor média das últimas nove eleições presidenciais, 25,36%, perdendo apenas para a de 1989, 18,37%, e a de 2006, 25,16%. No segundo turno, o índice de alienação foi de 25,18%, maior que todas as eleições nas quais houve segundo turno, menos as de 1989 (20,22%) e de 2006 (25,02%).

Desafios do presidente eleito

Os principais desafios de Lula, do ponto de visto político, será pacificar o país; do ponto de vista de governabilidade, será montar uma coalizão de sustentação no Parlamento; do ponto de vista social, será retirar o Brasil do mapa da fome e gerar empregos; e do ponto de vista fiscal, além de retomar o controle sobre o orçamento público, deve promover uma reforma que alcance as dimensões da receita e da despesa pública, buscando o equilíbrio capaz de incentivar os investimentos e honrar os compromissos de campanha com a pauta social.

Na perspectiva de pacificação do país, o presidente terá de dialogar muito com o mercado, com a sociedade e com o Congresso Nacional, pautando-se sempre pelo equilíbrio e pela calibragem ideológica, tanto na abordagem quanto no conteúdo das políticas públicas. Parece não restar dúvida que se trata de um governo de transição, que terá a missão de estancar o desmonte do Estado, desfazer os marcos legais que representaram retrocesso civilizatório, como a liberação sem controle de armas e a redução da participação social nas políticas públicas, e reconstruir o tecido social, para que o sucessor em 2026 possa governar sem terceiro turno.

Na busca pela governabilidade, o presidente vai precisar de muita paciência, tolerância e capacidade de diálogo para convencer os parlamentares, inclusive aqueles que apoiaram seu adversário no segundo turno, da importância, necessidade e urgência das medidas propostas, sob pena de o país perder a janela de oportunidade que mundo lhe abriu com a pandemia e a guerra da Ucrânia, além de aproveitar as vantagens que o Brasil possui na área do meio ambiente e do clima.

Na área social, a prioridade será eliminar a fome e criar condições para o país voltar a gerar emprego e renda, utilizando para tanto a ampliação e o fortalecimento dos programas de distribuição de renda, quanto os recursos dos bancos oficiais no fomento ao investimento e à geração de emprego e renda, especialmente na construção civil e nos setores de energia e meio ambiente.

No quesito fiscal, será equilibrar as contas públicas, mediante uma reforma que alcance as dimensões da receita e despesa, que de um lado reduza despesas não prioritárias e, de outro, promova uma reforma tributária justa, que assegure a continuidade da máquina pública e dos programas sociais. Uma das prioridades deve ser a mudança da fonte de custeio da seguridade – previdência, assistência e saúde –, já que a folha de salário dificilmente dará conta de arrecadar o suficiente para cobrir essa grande despesa, especialmente em razão da redução do emprego formal, que foi fortemente atingido pela precarização das relações de trabalho, pelo uso intensivo de plataformas digitais na área laboral, assim como pela onda de automação e digitalização nos processos produtivos e de prestação de serviços.

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, mestre em Políticas Públicas e Governo (FGV), consultor e analista político em Brasília. Ex-diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), é socio das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”